sábado, 16 de junho de 2012

BICAMPEÕES DO MUNDO

BICAMPEÕES DO MUNDO

Nelson Rodrigues

Amigos, estamos atolados na mais brutal euforia. Ontem, quando rompia a primeira estrela da tarde, o Brasil era proclamado bicampeão do mundo* . Foi um título que o escrete arrancou de suas rútilas entranhas. E, a partir da vitória, sumiram os imbecis, e repito: — não há mais idiotas nesta terra. Súbito o brasileiro, do pé- rapado ao grã-fino, do presidente ao contínuo, o brasileiro, dizia eu,
assume uma dimensão inesperada e gigantesca. O bêbado tombado na sarjeta, com a cara enfiada no ralo, também é rei. Somos 75 milhões de reis.
De sábado para domingo houve a feérica vigília do triunfo. Ninguém tinha dúvidas. Aí é que está, ninguém tinha dúvidas. E sofríamos porque há também a angústia da certeza. Mas eu falava da
grande véspera. Lotes de macumbas nas esquinas, botecos iluminados como velórios. Vinte e quatro horas antes da batalha, já tropeçavam na rua os bêbados da vitória. Amigos, nunca foi tão fácil
ser profeta.
Outrora o brasileiro era um inibido até para chupar Chica-bon. Agora não. Cada um de nós foi investido de uma vidência deslumbrante. Nós sentíamos o bi, nós o apalpávamos, nós o
farejávamos. E, a partir de ontem, vejam como a simples crioulinha favelada tem todo o élan, todo o ímpeto, toda a luz de uma Joana d’Arc. De repente, todas as esquinas, todos os botecos, todas as ruas
estão consteladas de Joanas d’Arc. E os homens parecem formidáveis como se cada um fosse um são Jorge a pé, um são Jorge infante, maravilhosamente infante.
Mas falemos do escrete. Esse time de negros ornamentais, folclóricos, divinos deslumbrou o mundo. Foi o mais belo futebol que jamais olhos humanos contemplaram. Perdemos um Pelé. Mas o Brasil vive um momento de tão selvagem euforia que imediatamente descobrimos um novo Pelé. E repito: - um feliz o povo que, na vaga de um gênio, põe outro gênio. Amarildo, o "Possesso", surgiu contra a Espanha. É o novo Pelé proclamado.



Amigos, O Brasil fez no Chile um sofrido futebol, um futebol quase feio, um duro futebol de cara amarrada. Jogávamos para vencer. Amarildo, o dostoievskiano, enfiava-se pela área como um rútilo epilético. Ao marcar os dois gols contra a Espanha pendia dos seus lábios uma baba elástica e bovina. E Garrincha? Foi o gênio duplo do escrete. E, com efeito, foi genial por ele e por Pelé. Vocês se lembram dos seus gols contra o Chile. O mané estava na meia esquerda. No primeiro gol, ele se tornou leve, elástico e acrobático. Deu uma cabeçada que enterrou o Chile.
O gênio soprava, o gênio ventava por todo o escrete. E ontem foi uma jornada deslumbrante. Os tchecos abriram o escore. 1 x 0. Setenta e cinco milhões de brasileiros perguntavam um ao outro: - "Vamos repetir 50?". Mas a derrota de 50 liquidou o Brasil da derrota. O que eu quero dizer é que, em seguida ao gol da Tcheco-eslováquia, Amarildo apanhou a bola. Nos dois últimos jogos ele fora bem pouco Amarildo e bem pouco possesso. Desta vez, porém, partiu para a Copa. Antes que o adversário pudesse esboçar o ferrolho, Amarildo dribla um, dribla dois. O goleiro adversário sai para cortar o centro. Era chegado o momento. E então o "Possesso" enfia a sua bomba entre o goleiro e a trave. A bola, também possessa, foi se cravar no fundo das redes. Parecia apenas o empate, mas era já o bi. O trágico é que começara de véspera o carnaval da vitória. Nunca um povo teve uma certeza tão violenta e tão possessa. O escrete tinha de vencer porque era somente o escrete, era também o homem brasileiro.
No segundo gol, ainda Amarildo, ainda o possesso. Nunca o "Possesso" foi tão dostoievskiano como no segundo gol. Novamente adernou para a esquerda. Nenhuma força humana ou divina poderia quebrar-lhe o ímpeto sagrado. Driblou não sei quantos. Lá estava Zito. E o "Possesso" deu-lhe o gol. Brasil 2X1. Batida a Tcheco-Eslováquia. O terceiro gol veio de uma bola alta de Djalma Santos. Vavá, furioso como um cossaco do Don, meteu a cabeça. A Tcheco-Eslováquia estrebuchou e pôs fogo pelas narinas, como o dragão de São Jorge.
Setenta milhões de brasileiros profetizaram o triunfo. Amigos, depois da vitória não me falem na Rússia, não me falem nos Estados Unidos. Eis a verdade: - a Rússia e os Estados Unidos começaram a ser o passado. Foi a vitória do homem brasileiro, ele sim, o maior homem do mundo. Hoje o Brasil tem a potencialidade criadora de uma nação de napoleões.

*Brasil 3 x 1 Tcheco-Eslováquia, 17/6/1962, Estádio Nacional de Santiago, Chile.
Jogo final da Copa.

Texto publicado em O Globo, em 18/6/1962

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