sábado, 29 de setembro de 2012


Aviões de guerra entre as montanhas de MinasInaugurada em 1946, em Lagoa Santa, na Região Metropolitana de BH, a primeira grande fábrica de aeronaves militares do Brasil não conseguiu sobreviver a 1951


Publicação: 29/09/2012 06:00 JORNAL ESTADO DE MINAS

Solenidade de entrega de 10 aviões à Força Aérea Brasileira (FAB), em março de 1950, na fábrica de Lagoa Santa
 (ARQUIVO EM)
Solenidade de entrega de 10 aviões à Força Aérea Brasileira (FAB), em março de 1950, na fábrica de Lagoa Santa



















Nadécada de 1930, Lagoa Santa era apenas um quase despovoado distrito do município de Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. As péssimas vias de acesso pareciam alongar os 38 quilômetros de distância para a capital. Não havia mão de obra qualificada nem infraestrutura urbana. Apesar disso, a comissão nomeada pelo então presidente Getúlio Vargas considerou que o clima seco protegeria da corrosão as chapas de metal. Além do mais, se ficasse próxima ao litoral, a empresa seria alvo fácil para um eventual ataque. Em 1946, naquela região isolada e agreste, foi inaugurada o que seria a primeira grande fábrica de aviões militares do Brasil. As ambições do governo federal, porém, foram logo abatidas e a iniciativa morreu em 1951.

A ideia começou a ser gestada em 1933, quando o “Arc en Ciel”, um avião trimotor francês, partiu de Paris e, pousando em Natal (RN), realizou a primeira travessia comercial do Atlântico Sul. Naquele ano, Vargas recebeu a visita do projetista da máquina, René Couzinet, e o convidou para estebelecer uma linha nacional de produção de aeronaves. Em 1935, o entusiasmado europeu integrou a comissão – formada também por representantes do Exército, da Marinha e da Aviação Civil – que definiu a localização da fábrica. Entre as supostas vantagens de Lagoa Santa, estava o fato de existir ali a lagoa que lhe dá nome, apropriada ao teste de hidroaviões, aeroplanos preparados para decolagens e pousos sobre a superfície da água.

Em 1935, o presidente Vargas, autoridades civis e militares lançaram, com todas as pompas, a pedra fundamental das futuras instalações. Pouco depois, o Decreto-Lei nº 617, de 1938, autorizou a abertura de concorrência pública para a construção da fábrica. Apenas uma companhia se apresentou. Foi a Construções Aeronáuticas S/A, que reunia empresários brasileiros e franceses, tinha Couzinet como diretor técnico e foi declarada vencedora. No contrato assinado em 1940, o governo assegurava condições excepcionais ao negócio. Haveria autonomia administrativa e comercial, isenção de impostos e garantia de 15% de lucro sobre as encomendas.

A fábrica iniciaria suas atividades com a produção, sob licença, do avião North American Texan 6. O T-6, como ficou conhecido, é uma aeronave que possui dois lugares, pesa 2,4 toneladas e alcança velocidade máxima de 300 km/h. O aparelho seria usado no treinamento de pilotos. “Os aviões usados até então, como o ‘paulistinha’, eram muito básicos. Os alunos passavam a níveis mais avançados e não tinham avião para treinar. O T-6 supriria essa demanda”, explica em entrevista ao Estado de Minas o pesquisador Roberto Pereira de Andrade, autor do livro A construção aeronáutica no Brasil: 1910-1976.

O governo e os empresários se depararam, todavia, com um contratempo. Em 1939, eclodiu a Segunda Guerra Mundial. A primeira fase das obras da fábrica foi concluída no início de 1943, mas estava difícil importar equipamentos e maquinário dos Estados Unidos, envolvidos no conflito. E o Brasil não conseguiria se bancar sozinho. “O país não tinha capacidade técnica, não tinha uma engenharia mecânica e elétrica para tocar esse tipo de tecnologia”, aponta o economista Clélio Campolina, autor de Estado e capital estrangeiro na industrialização mineira.

Tentativa de recuperação

O governo acreditava que outros fatores concorriam para a ineficiência da fábrica e, em 1945, passou a empresa aos cuidados do Grupo Pignatari, que mantinha a mais importante fábrica de aviões do país, a Companhia Aeronáutica Paulista. A missão, no entanto, não seria fácil. Em Lagoa Santa, não havia água encanada, energia elétrica, rede de esgotos, hospitais, segundo texto publicado pelo Centro Histórico da Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer). Os novos responsáveis pelo negócio ainda tiveram que capacitar a mão-de-obra local para as funções administrativas e só depois instalar o maquinário.

O contrato com a North American previa 81 unidades feitas no Brasil. Os primeiros 61 viriam desmontados e suas partes seriam reunidas em Lagoa Santa. Os 20 restantes teriam algumas peças de fabricação nacional, como freios e antenas. Em março de 1946, a primeira leva foi entregue ao 1º Regimento de Aviação. Mas os últimos lotes esperaram “muito tempo pelos motores”, que haviam se perdido e foram encontrados “numa distante base aérea”, escreveu Andrade. Como a empresa não conseguiu cumprir a contento o contrato, a Ministério da Aeronáutica a assumiu em 1949, produzindo o último T-6 em 1951.

Após ser fechada, a fábrica deu origem ao atual Parque de Material Aeronáutico de Lagoa Santa (PAMA-LS), que dá suporte à Força Aérea Brasileira na manutenção e recuperação de equipamentos. Andrade classifica como “engano” a fracassada iniciativa. “Naquele tempo, Lagoa Santa não tinha nada, era mato. A fábrica já começou errado pela escolha do local. Por que não montaram em Belo Horizonte?” Para Campolina, porém, a indústria teria dado errado onde quer que fosse. “O Brasil não tinha nem produção qualificada de alumínio e aço”, justifica.

Apesar do fracasso, José Francisco, aos 79 anos, lembra com saudade daquele tempo. Ainda garoto, levava a marmita do pai, que ajudou a erguer as paredes da fábrica. “O pessoal se entusiasmava vendo os aviões sendo testados, eram muito bonitos.” Mais tarde, os T-6 fariam a alegria de muita gente pelo país. Eles foram os primeiros modelos usados pela popular Esquadrilha da Fumaça.

Linha do tempo

Em 1935, o presidente Vargas, autoridades civis e militares lançaram a pedra fundamental das futuras instalações da fábrica de aviões de Lagoa Santa.

Em 1940, a empresa Construções Aeronáuticas S/A foi contratada para “construção, instalação e exploração” da fábrica, como está escrito no Decreto-Lei nº 2.176, de 6 de maio de 1940.

Em 1944, a fábrica ficou pronta, mas só começou a produzir aeronaves em 1946.

Em 1949, descontente com o andamento do negócio, o Ministério da Aeronáutica assumiu a indústria.

Em 1951, foi fabricado o último dos 81 aviões North American Texan 6, conhecido como T-6. A indústria foi desativada e passou a realizar apenas manutenção de equipamentos aeronáuticos.

Em 1952, alguns T-6 feitos em Lagoa Santa foram os primeiros modelos pilotados pela Esquadrilha da Fumaça

sábado, 22 de setembro de 2012

CEM ANOS DA GUERRA DO CONTESTADO: NOVAS DESCOBERTAS


HISTÓRIA

Claro Jansson/ Revelando Contestado
Claro Jansson/ Revelando Contestado / Caboclos, as maiores vítimas das batalhas, durante missa: número de camponeses mortos podeia chegar a 30 milCaboclos, as maiores vítimas das batalhas, durante missa: número de camponeses mortos podeia chegar a 30 mil
100 ANOS DA GUERRA SANTA

Contestado também teve fornos de extermínio

Pesquisas sobre a batalha entre Paraná e Santa Catarina mostram que caboclos foram queimados em fornos de barro. Objetivo era mascarar a matança e evitar a putrefação dos corpos
Foi com grimpa de araucária e nó-de-pinho que o fogo dos crematórios da Guerra do Contestado esteve aceso a todo vapor. A partir das extremidades de um buraco feito no chão de terra era erguido um muro de taipa e de pedra de mais ou menos um metro que funcionava como forno para queimar corpos humanos. Ali eram jogadas não apenas as maiores vítimas da batalha que completa 100 anos em 2012, os caboclos, mas também os militares que morreram na chamada Guerra Santa (1912-1916). Esses fornos logicamente não chegaram a queimar em igual quantidade aos usados pelo Holocausto, mas tinham também a missão de mascarar a matança e evitar a putrefação dos corpos nos campos da região.
Quem descobriu esses cre­matórios foi o geógrafo e professor da Universidade Estadual de Londrina Nilson César Fraga, em 2000, durante uma expedição exploratória, com seus alunos, na região dos antigos enfrentamentos entre a população cabocla e as forças militares do poder estadual e federal brasileiro, travados em áreas disputadas pelos estados do Paraná e de Santa Catarina. “Não sabíamos dessas coisas tão violentas naquele território”, afirma.

Claro Jansson/ Revelando Contestado
Claro Jansson/ Revelando Contestado / Barricadas do Contestado: disputa por terras foi a causa principal da guerraAmpliar imagem
Barricadas do Contestado: disputa por terras foi a causa principal da guerra
Causas
O professor Paulo Pinheiro Machado explica resumidamente quais foram os fatores principais que culminaram na Guerra do Contestado:
Terras
A disputa pela terra é certamente a causa principal da guerra, em decorrência da tentativa de expropriação de posseiros e ervateiros caboclos, que aconteceu em três processos diferentes. No primeiro deles, houve a gradativa concentração fundiária promovida por pecuaristas, que transformavam em agregados os posseiros e sitiantes que viviam independentes, nos limites das fazendas. Posteriormente houve a concessão de até 15 km de cada lado do leito da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande para a empresa norte-americana Brazil Railway Company. E também a grilagem de coronéis da Guarda Nacional do Paraná sobre os territórios contestados por Santa Catarina.
Coronelismo
Há uma forte crise política nos anos 1911 a 1918, com a quebra de laços clientelísticos, principalmente nos municípios de Curitibanos (SC) e Canoinhas (SC).
Militarização
Muitas autoridades municipais mantinham grupos de vaqueanos armados disponíveis para a ação nas regiões contestadas.
Campanha federalista
A herança política e militar da Guerra Federalista (1893-95), de recrutar agricultores e peões para os dois lados da contenda, trouxe à população do planalto uma tradição de luta e o conhecimento de práticas de combate.
Religiosidade
A trajetória do monge ou dos diferentes indivíduos que assumiram a identidade de João Maria criou um espaço de autonomia e organização da população sertaneja, independente do Estado e do Clero.
Consequências
Consolidou-se a concentração fundiária, reforçaram-se os poderes dos coronéis, diminuíram a autonomia e a independência de pequenos posseiros e sitiantes.
Semana de História
A Academia Paranaense de Letras e o Instituto Histórico e Geográfico do Paraná promovem nos dias 25, 26 e 27 de setembro a 18ª Semana de História. No dia 25, terça-feira, o professor Renato Augusto Carneiro Júnior vai proferir uma palestra sobre “A Questão do Contestado”, das 19 às 21 horas. Os debates serão realizados no Auditório Brasílio Itiberê (Rua Cruz Machado, 138). As inscrições são gratuitas e podem ser feitas pelo 3224-0683 ou ihgpr1900@hotmail.com.
Livro
As imagens que ilustram essa página fazem parte do livro Revelando Contestado, que será lançado em outubro pela Imprensa Oficial do Paraná, em parceria com a RPCTV e a TV Educativa. A obra traz cerca de cem fotos feitas pelo fotógrafo sueco Claro Jansson. Ele foi contratado para fotografar a serraria e a estrada de ferro e acabou flagrando o início do conflito.
Os crematórios, pelo menos 12, ainda existem nas terras do Contestado, segundo o geógrafo, e estão em propriedades privadas sem a devida conservação e manutenção. É impossível quantificar os cremados nesses fornos, até porque o número de mortes na batalha não é algo pacificado entre pesquisadores: dizem que foram de 10 a 20 mil, mas o número poderia chegar a 30 mil. Fraga explica que a maior parte dos crematórios se encontra na cidade de Lebon Régis (SC), numa localidade chamada Perdizinha, para onde a população cabocla avançava nos meses finais do conflito. Mas há outros também perto de Porto União (SC) e União da Vitória (PR).
Centenário
No dia 22 de outubro deste ano se recorda o centenário do início da guerra do Contestado: foi nessa data que o coronel João Gualberto e o monge José Maria foram mortos na Batalha de Irani. O início da guerra, porém, assim como vários fatores que envolvem o conflito, não são questões bem definidas. O historiador Everton Carlos Crema, professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Paraná (Fafi), explica que já havia conflitos de terra na região antes de 1912. Há ainda outros historiadores que definem o início da guerra apenas com a formação do ajuntamento dos devotos do monge, em Taquaruçu, em 1913.
Turmeiros
É justamente no clima de 100 anos da guerra que diversos historiadores têm se debruçado sobre o assunto para desvendar questões pontuais. Por causa dos relatórios deixados pelo coronel Setembrino de Carvalho, nomeado pelo governo federal, acreditava-se que quem havia construído a estrada de ferro na região seria bandido e que esses “bandidos”, como descreve Setembrino, eram responsáveis por encabeçar o movimento dos caboclos.
“Colocava-se ainda que esses turmeiros teriam vindo do centro do Brasil. Na minha pesquisa de doutorado, pude perceber que não era bem isso”, afirma Márcia Janete Espig, autora do livro Personagens do Contestado: os turmeiros da estrada de Ferro São Paulo - Rio Grande. Márcia conseguiu documentos que comprovam que quase todos os turmeiros (quase 10 mil) deixaram a região antes mesmo de a guerra começar, conforme terminavam os trabalhos.
Quem perdeu foi o PR, não os donos de terra
O Paraná saiu perdedor na Guerra do Contestado porque teve de abrir mão de uma grande área de terras para Santa Catarina (todo o oeste catarinense). O acordo da delimitação territorial foi assinado no fim do conflito, em 1916, a pedido do presidente Venceslau Brás. A nova delimitação dividiu ao meio alguns territórios, dando origem a cidades diferentes, como União da Vitória (PR) x Porto União (SC) e Rio Negro (PR) x Mafra (SC).
Entretanto, apesar de o Paraná ter sido derrotado no acordo, os fazendeiros paranaenses não perderam nenhum pedaço de terra. No acordo do limite, uma cláusula dizia que, mesmo nos territórios que estivessem sob nova jurisdição (a catarinense), se houvesse dúvidas sobre a propriedade da terra, valeria o título que estivesse em cartório paranaense, explica o historiador Paulo Pinheiro Machado, autor de livros sobre a guerra, entre eles Lideranças do Contestado: a formação das chefias caboclas.
Já os caboclos foram certamente os mais prejudicados, porque, além de terem perdido a guerra física (no final estavam esgotados e morrendo de fome por causa do cerco feito pela Guarda Nacional), foram escorraçados de suas terras e tiveram ou de ir para regiões mais distantes (montanhas e lugares de terras inférteis) ou voltaram para as fazendas, mas sob a condição de peões. Poucos conseguiram voltar para seus próprios sítios.
Lei
Vale lembrar que o Brasil tinha uma lei de terras de 1850, mas ela beneficiava o acesso à propriedade apenas por compra, herança ou doação, o que quer dizer que os incentivos que existiam no Brasil (de que quem cultivasse a terra seria o proprietário dela) não valiam no papel, porque os caboclos, por exemplo, tomaram posse das terras do Contestado e as cultivaram, mas não conseguiram ter a titularidade das propriedades.
“É óbvio que as terras tinham donos. Eram dos caboclos, dos grupos miscigenados que viviam na região. Mas como eles teriam condições de pagar um agrimensor para fazer a legitimização da terra? Além disso, eram os coronéis da região que determinavam quem seria o pároco, o delegado e o cartorário. Ou seja, o cartorário não iria beneficiar os caboclos”, explica o historiador Everton Crema

FONTE: JORNAL GAZETA DO POVO - VIDA COTIDIANA - DE 22/09/2012

sábado, 15 de setembro de 2012

PRIMAVERA AMEAÇADA





O vídeo "Inocência dos Muçulmanos", que serve de pretexto para uma sucessão de ataques contra alvos americanos em países islâmicos, é de uma sordidez ímpar. Tacanho e intolerante, não representaria mais que uma tentativa canhestra de incitar preconceito contra islamitas --não fosse pelos efeitos mortais que desencadeou.

Ainda é obscura a autoria do filmete de 14 minutos, que desde julho pode ser baixado para visualização em computador. Há indícios, porém, de que teve apoio de militantes cristãos ultraconservadores da Califórnia e da Flórida.

Após ganhar legendas em árabe, difundiu-se pelo mundo. Na data simbólica de 11 de setembro, motivou ataques a representações dos EUA no Egito e na Líbia --neste último, foram mortos o embaixador J. Christopher Stevens e mais três americanos, em ação que teria contado com membros da Al Qaeda.

Novos conflitos ocorreram ontem no Egito, no Iêmen e em outros países, com centenas de feridos.

Por odioso que seja o vídeo, sua repercussão e a violência que a acompanhou são desmesuradas. Em países ocidentais, onde o valor da liberdade de expressão se sobrepõe às compreensíveis sensibilidades religiosas, se enquadra na categoria das baixezas que a democracia se condena a tolerar.

Não é assim em nações muçulmanas. Em especial naquelas com pendor ou domínio teocrático, a sacralidade de normas e entidades corânicas precede a própria noção de direitos fundamentais.

Mesmo que se reconheça a justiça da repulsa de fiéis à profanação da figura de Maomé, não há como justificar com ela o assassínio de inocentes --como funcionários sacrificados só por serem americanos-- nem como conciliar ideal algum de civilização com tamanho fundamentalismo religioso. Tal é o ponto de fuga em que tende a esvair-se o entendimento entre democracias ocidentais e as versões mais sectárias do islamismo.

Claro está que também se encontram exemplos de fanatismo nos EUA, mas não escaladas de ódio como as que ora se observam em algumas sociedades islâmicas.

Seria lamentável, portanto, se o presidente Barack Obama, em plena campanha pela reeleição, sequer cogitasse usar o ocorrido como desculpa para incursões punitivas, violando a soberania de nações para amealhar simpatia entre eleitores belicistas.

Preocupa, com efeito, que a violência antiamericana tenha eclodido em países pioneiros da Primavera Árabe, como Tunísia, Egito e Líbia. Se recrudescer, pode revelar-se sintoma de que o movimento por democracia cede terreno para facções islâmicas mais afeitas a ditaduras teocráticas como a do Irã.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

SEMANA DE ARTE MODERNA DE 1922






O SARAMPO ANTROPOFÁGICO



A respeito do movimento modernista, os críticos e os estudiosos entram em sintonia num ponto: a Semana de Arte Moderna, realizada em 1922, em São Paulo, representou um marco, verdadeiro ponto de inflexão no modo de ver o Brasil.

Não só de ver como de escrever sobre o Brasil. Em geral, os artistas e intelectuais de 1922 queriam arejar o quadro mental da nossa "intelligentsia", queriam pôr fim ao ranço beletrista, à postura verborrágica e à mania de falar difícil e não dizer nada. Enfim, queriam eliminar o mofo passadista da vida intelectual brasileira.

Do ponto de vista artístico, o objetivo fundamental da Semana foi acertar os ponteiros da nossa literatura com a modernidade contemporânea.
Para isso, era necessário entrar em contacto com as técnicas literárias e visões de mundo do futurismo, do dadaísmo, do expressionismo e do surrealismo, que formavam, na mesma época, a vanguarda européia. Desse ângulo, o modernismo é expressão da modernização operada no Brasil a partir da década de 20, que começava a dar sinais de mudança (vide, no plano político, o movimento rebelde dos tenentes) de uma economia agroexportadora para uma economia industrial.

Esse juízo é, do ponto de vista mais geral, certeiro; no entanto, ele não deve esconder as diferenças no seio do movimento de 22. Diferenças de ordem política, ideológica e estética. Na verdade, houve duas correntes modernistas: uma de inspiração conservadora e totalitária, que iria, em 1932, engrossar as fileiras do integralismo, e outra, mais crítica e dissonante, interessada em demolir os mitos ufanistas e contribuir para o conhecimento de um Brasil real que não aparecia nas manifestações oficiais e oficiais da nossa cultura. O pressuposto essencial de 22, o autoconhecimento do País, tinha a um só tempo de acabar com o mimetismo mental e denunciar o atraso, a miséria e o subdesenvolvimento. Mas denunciar com uma linguagem do nosso tempo, moderna, coloquial, aproveitando o arsenal estilístico e estético das inovações vanguardas européias.

Essas duas correntes se delineiam em 1924, com a publicação do primeiro manifesto de Oswald de Andrade, Pau Brasil, no "Correio da Manhã". Nele já estava inscrito o lema que guiaria toda a atividade artística e intelectual da ala crítica modernista: "A língua sem arcaísmos, sem erudição. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos". A outra corrente, conservadora, que iria opor-se a Oswald de Andrade, seria conhecida por verde amarelismo, cujo batismo mostra bem a filiação nacionalista e xenófoba: um canto de amor, cego e irrestrito, às "glórias pátrias". Em 1928, essa oposição recrudesce. E, com ela, a politização do modernismo. Verde-amarelismo transmuta-se em Anta; Paulo-Brasil deságua no movimento antropofágico.

Neste mês de maio faz 50 anos que o inquieto, o irreverente e zombeteiro Oswald de Andrade escreveu o manifesto literário antropofágico. De lá para cá muita coisa mudou no Brasil. Tanto política como culturalmente. Apesar de marcado ainda por traços de dependência, o País se industrializou nas últimas décadas; houve mudanças sociais e econômicas significativas. Se não quisermos apenas celebrar ingenuamente a data, temos de nos perguntar: teria ainda alguma coisa a dizer e a ensinar o manifesto literário escrito em 1928?

Para isso, seria preciso situar o núcleo da antropofagia, que Oswald de Andrade, aliás, nunca formulou clara e explicitamente; seu manifesto foi escrito numa linguagem elíptica, repleta de ambiguidades e sem ligação explícita entre as frases. Mas, mesmo assim, dele é possível extrair algumas formulações. O que o caracteriza é a retratação do caráter assimétrico da nossa cultura, onde coexistiam o bacharelismo de Rui Barbosa, ou as piruetas verborrágicas de Coelho Neto, junto com as experiências vanguardistas do pintor Portinari. E hoje, de um lado, a moda de viola e a música sertaneja; doutro lado, a bossa nova e o cinema novo. Essa mistura, por assim dizer, era vista como resultado do desenvolvimento histórico no Brasil que, apesar de unitário, apresenta um abismo entre os aspectos arcaicos e modernos, entre as favelas e os arranha-céus, entre os guardadores de carro e os "shopping-centers", entre Embratel e Piauí.





O manifesto antropofágico tocou no cerne do capitalismo no terceiro mundo: a dependência. Ou pelo menos captou seus reflexos no plano da cultura. Denunciou o bacharelismo das camadas cultas, que permanecem alheadas da realidade do País, reproduzindo os simulacros dos países capitalistas hegemônicos. Ironizou a consciência enlatada de largos setores do pensamento brasileiro, que se comprazem, quando muito, em assimilar idéias, jamais criá-las. Se Oswald de Andrade teve a lucidez de ridicularizar com o mimetismo que tanto seduz o intelectual solene e bacharel, ele não caiu no equívoco de fechar as portas do País do ponto de vista cultural. Ao contrário, sua formulação em torno da "deglutição antropofágica" exige o remanejamento das idéias mais avançadas do Ocidente em conformidade com a especificidade de nosso contorno social e político.

Nesse ponto é difícil negar sua atualidade. Ademais, a estrutura social que a antropofagia reflete e denuncia ainda não mudou em seus aspectos fundamentais. A industrialização das últimas décadas, realizada sob a égide do capitalismo concentracionista, aguçou ainda mais o desenvolvimento desigual em nosso País, trazendo, de um lado, sofisticação e modernização tecnológicas e, doutro lado, engendrando bóias-frias e marginalidade urbana. O Brasil em que Oswald escreveu o manifesto antropofágico e o Brasil de hoje é ainda o mesmo, ostentando, entre outras coisas, "berne nas costas e calosidades portinarescas nos pés descalços".

*

A retomada oswaldina na década de 60 sobretudo pela música popular (através do movimento tropicalista), tem a sua razão de ser em parte na persistência dessa estrutura social. Ao contrário da década de 40 - época em que foi injustamente criticado de escritor desleixado e superficial - Oswald de Andrade goza, nos dias de hoje, de enorme receptividade, principalmente junto ao público universitário. Ao lado de Mário de Andrade, que forma o outro pólo da moderna literatura brasileira, é impossível compreender o sentido e a dinâmica do movimento de 22 sem levá-lo em conta.

Nesse sentido, o manifesto antropofágico é um sarampo que pegou fundo e de maneira duradoura a cultura no Brasil.

O texto acima é um editorial. Foi publicado na Folha de S.Paulo no dia 15 de maio de 1978

domingo, 2 de setembro de 2012

HERANÇA PESADA - ARTIGO DE FHC

HERANÇA PESADA


Fernando Henrique Cardoso

O Globo, 02/09/2012

Males morais e prejuízos materiais sensíveis para o futuro da nação foram deixados pelos oito anos de governo Lula para a presidente Dilma Rousseff

A presidenta Dilma Rousseff recebeu uma herança pesada de seu antecessor. Obviamente, ninguém é responsável pela maré negativa da economia internacional, nem ela nem o antecessor. Mas há muito mais do que só o infortúnio dos ciclos do capitalismo.

Comecemos pelo mais óbvio: a crise moral. Nem bem completado um ano de governo, e lá se foram oito ministros, sete dos quais por suspeitas de corrupção. Pode-se alegar que quem nomeia ministros deve saber o que faz. Sem dúvidas, mas há circunstâncias. No entanto, como o antecessor jogou papel eleitoral decisivo, seria difícil recusar de plano seus afilhados. Suspeitas, antes de se materializarem em indícios, são frágeis diante da obsessão por formar maiorias hegemônicas, enfermidade petista incurável.

Mas não foi só isso: o mensalão é outra dor de cabeça. De tal desvio de conduta, a presidenta passou longe e continua se distanciando. Mas seu partido não tem jeito. Invoca a prática de um delito para encobertar outro: o dinheiro desviado seria “apenas” para o caixa dois eleitoral, como disse Lula em tenebrosa entrevista dada em Paris, versão recém-reiterada ao “New York Times”. Pouco a pouco, vai-se formando o consenso jurídico, de resto já formado na sociedade, de que desviar dinheiro é crime, tanto para caixa dois como para comprar apoio político no Congresso. Houve mesmo busca de hegemonia a peso de ouro alheio.

Mas não foi só isso que Lula deixou como herança à sucessora. Nos anos de bonança, em vez de aproveitar as taxas razoáveis de crescimento para tentar aumentar a poupança pública e investir no que é necessário para dar continuidade ao crescimento produtivo, preferiu governar ao sabor da popularidade. Aumentou os salários e expandiu o crédito, medidas que, se acompanhadas de outras, seriam positivas.

Deixou de lado as reformas politicamente custosas: não enfrentou as questões regulatórias para acelerar as parcerias público-privadas e retomar as concessões de certos serviços públicos. A despeito da abundância de recursos fiscais, deixou de racionalizar as práticas tributárias, num momento em que a eliminação de impostos poderia se fazer sem consequências negativas: a oposição conseguiu suprimir a CPMF, cortando R$ 50 bilhões de impostos, e a derrama continuou impávida.

É longa a lista do que faltou fazer quando seria mais fácil. Na questão previdenciária, o único “avanço” não se concretizou: a criação de uma previdência complementar para os funcionários públicos que viessem a ingressar depois da reforma. A medida foi aprovada, mas sua consecução dependia de lei subsequente, para regulamentar os fundos suplementares, que nunca foi aprovada.

As centenas de milhares de recém-ingressados no serviço público na era lulista continuaram a beneficiar-se da regra anterior. Foi preciso que novo passo fosse dado pelo governo atual para reduzir, no futuro, o déficit da Previdência.

Que dizer, então, de modificações para flexibilizar a legislação trabalhista e incentivar o emprego formal? A proposta enviada pelo meu governo, com esse objetivo, embora assegurando todos os direitos trabalhistas previstos na Constituição, foi retirada do Senado pelo governo Lula em 2003. Agora é o próprio Sindicato Metalúrgico de São Bernardo do Campo que pede a mesma coisa…

Mas o “hegemonismo” e a popularidade à custa do futuro forçaram outro caminho: o dos “projetos de impacto” como certos períodos do autoritarismo militar tanto prezaram. Projetos que não saem do papel ou, quando saem, custam caríssimo ao Tesouro e têm utilidade relativa.

O exemplo clássico foi a formação a fórceps de estaleiros nacionais para produzir navios-tanque para a Petrobras (pagos, naturalmente, pelos contribuintes, seja através do BNDES, seja pelos altos preços desembolsados pela Petrobrás). Depois do lançamento ao mar do primeiro navio, com fanfarras e discursos presidenciais, passaram-se meses para descobrir-se que o custo não fez jus a tanta louvação.

Que dizer dos atrasos da transposição do São Francisco ou da Transnordestina, ou ainda da fábrica de diesel à base de mamona? Tudo relegado aos restos a pagar do esquecimento.

O que mais pesa como herança é a desorientação da política energética. Calemos sobre as usinas movidas “a fio d água”, cuja eletricidade para viabilizar o empreendimento terá de ser vendida como se a produção fosse firme o ano inteiro e não sazonal. Foi preciso substituir o companheiro que dirigia a Petrobras para que o país descobrisse o que o mercado já sabia, havendo reduzido quase pela metade o valor da empresa.

O custo da refinaria de Pernambuco será dez vezes maior do que o previsto; há mais três refinarias prometidas que deverão ser postergadas ad infinitum. O preço da gasolina, controlado pelo governo, não é compatível com os esforços de capitalização da Petrobras. Como consequência de seu barateamento forçado — que ajuda a política de expansão ilimitada de carros com a coorte de congestionamentos e poluição —, a produção de etanol se desorganizou a tal ponto que estamos importando etanol de milho dos Estados Unidos!

Com isso tudo e apesar de estarmos gastando mais divisas do que antes com a importação de óleo, o presidente Lula não se pejou em ser fotografado com as mãos lambuzadas de petróleo para proclamar a autossuficiência de produção, no exato momento em que a produtividade da extração se reduzia.

No rosário de desatinos, os poços secos, ocorrência normal nesse tipo de exploração, deixaram de ser lançados como prejuízo, para que o país continuasse embevecido com as riquezas do pré-sal, que só se materializarão quando a tecnologia permitir que o óleo seja extraído a preços competitivos, que poderão se tornar difíceis com as novas tecnologias de extração de gás e óleo dos americanos.

É pesada como chumbo a herança desse estilo bombástico de governar que esconde males morais e prejuízos materiais sensíveis para o futuro da nação