sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

O FALSO JUDAS E O GUERRILHEIRO DE BOUTIQUE.



O FALSO JUDAS E O GUERRILHEIRO DE BOUTIQUE



















Quando eu estava na faculdade, conheci um professor que me chamou a atenção pela erudição e pela elegância no trato com a profissão e com as pessoas. Vamos chamá-lo a partir de agora de Miguel.


O professor Miguel era o titular da cadeira de História Antiga e Medieval. Não era ais um jovem, estava aí na casa dos 60 anos, homem experiente e especialista no assunto.E sempre fui apaixonado por história antiga e história medieval. As aulas eram uma viagem, e eu descobria detalhes culturais e territoriais de dezenas de povos e civilizações, em número muito maior do que até então eu imaginava,


Ao mesmo tempo, estranhava a baixa frequência às aulas por parte da turma, e as caras e bocas debochadas de alguns. Mas, estava tão focado nas aulas que deixava aquilo em segundo plano.


Ao longo do curso, eu e alguns amigos passamos a procurar o prof. Miguel com frequência, ávidos em aproveitar o conhecimento que ele detinha, especialmente quando sociedade romana. E era muito fácil fazer isso, pq raramente o tempo dele estava ocupado com outros alunos e, principalmente, ele demonstrava total entrega a nossa curiosidade.


O outro extremo dessa situação, era o professor que chamaremos a partir de agora de Carlos. O prof Carlos era a estrela do departamento de história: aulas lotadas, e um séquito permanente de alunos seguindo seus passos e suas falas. E ele estimulava aquilo: era um pavão, que falava e agia como se deitasse luz sobre a humanidade a cada palavra. Tratava as pessoas com grosseria e arrogância e por diversas vezes observei assédio mal disfarçado para com as alunas. Não sei se deu pra perceber, mas eu não gostava da pessoa, além de achar o profissional um tanto superficial. Não tenho problema nenhum em lidar com pessoas das quais não gosto, mas nas quais reconheço um valor profissional. Mas, não era o caso dele.


Enquanto isso, nossas conversas com o prof Miguel se tornaram rotina e extrapolaram o curso: conversamos sobre a vida. E sua forma de ver e viver a vida eram tão interessantes quanto as aulas do professor. Acabei me tornando Monitor de História Antiga e Medieval e a convivência com ele se tornou profissional e pessoal.


Certo dia, uma amiga veio nos "alertar" que a nossa amizade com o prof. Miguel estava "pegando mal" com os outros alunos. Ela nos disse que o prof Miguel era um reacionário, um traidor, um Judas que havia apoiado o Golpe de 64, havia inclusive aceitado o papel de interventor nomeado pelos militares para a direção da FAFICH/UFMG, logo depois do golpe. O outro extremo disso era, como já devem imaginar, o prof, Carlos, tido como um herói da resistência, que havia sido preso e torturado em 64. Alguns, inclusive, diziam que ele tinha participado da Luta Armada.


Diziam também que o prof Miguel era um "velho tarado" que havia abandonado a família para viver com uma menina muito mais jovem que ele, e que tinha inclusive engravidado a pobre menina.


Nunca fui, nem naquela época, nem hoje, de tomar decisões pessoais baseado no que os outros pensam ou dizem. Ao longo da vida, a gente aprende que a gente deve ouvir algumas pessoas, que passam pelos nossos filtros de valores, e que os outros são só os outros.


Decidimos continuar nossa amizade com o professor, gozar daquela preciosa companhia tanto profissional quanto pessoal o máximo que pudéssemos. E é claro que pagamos o preço: passamos a ver chamados de reaças pelos colegas. Como já disse, os outros são apenas os outros. E segue a vida.


Num belo dia, o prof Miguel nos convidou para ir à casa dele, para um almoço. E fomos.


Ele morava em um condomínio fechado, a alguns quilômetros do centro da cidade, subindo a BR 040. A casa era daquela de madeira tratada, pré-moldada, em estilo europeu. Pequena e aconchegante. A esposa era de fato muito mais jovem que ele, tão educada e gentil quanto ele, assim como a filhinha do casal. Foi uma delícia de domingo, regado a vinho, massas, história e histórias. Entre essas histórias, a história dele: formado em direito, havia abandonado a profissão e seguido o caminho da História. Passou por uma tragédia familiar, perdeu a esposa em situação trágica, passou anos se reconstruindo, até que encontrou aquele novo amor, e, apesar da preocupação com o que "os outros iam pensar" (ah, os outros!) decidiram construir uma vida juntos.O tal interventor não era ele, era um outro professor, também com origem no curso de direito, que havia passado algum tempo no departamento de história, na área de Antiga e Medieval, por falta de especialistas na disciplina, mas que após a contratação do prof. Miguel, havia retornado para a Escola de Direito.


Fechávamos nosso semestre com chave de ouro, levando para o resto da vida uma pessoa, e agora uma família, iluminados.


mais ou menos um ano depois, conversando com outros professores do departamento, descobrimos que o prof, Carlos era um embuste: descobriram que ele nunca foi preso, nunca foi torturado, nunca havia se envolvido com a Lota Armada e, pior: quando da intervenção na universidade, em 64, ele simplesmente "sumiu". Se escondeu enquanto os colegas enfrentavam a barra.


Enfim: o professor Judas era um homem de verdade e o professor herói da resistência era uma farsa. Um pobre coitado que vivia do marketing da revolução, como diria Luiz Felipe Pondé.


O que isso me ensinou? Me ensinou que ter caráter é, também, tomar posição. Não acovardar-se diante dos outros e, principalmente, nunca abrir mão dos seus valores.


Sinto apenas, hoje, que o professor Miguel já tenha nos deixado, Mas toda vez que dou aula sobre o Império Romano, me lembro dele e tento me aproximar, o mais que posso, de sua intensidade e de sua paixão pela História.


Obrigado, "Miguel".