quarta-feira, 21 de maio de 2014

ELEIÇÃO NA ÍNDIA MUDARÁ O MUNDO

ELEIÇÃO DA ÍNDIA MUDARÁ O MUNDO

Martin Wolf
Folha de São Paulo
21-05-14



Surjit Bhalla, um economista indiano, me escreveu afirmando que a recente eleição na Índia foi "a mais momentosa da história do mundo". Discordo: as eleições de Abraham Lincoln e Franklin Roosevelt foram mais significativas. Mas a ideia não é absurda. A população da Índia é de 1,27 bilhão de habitantes. Em breve ela ultrapassará a China como país mais populoso do planeta. Se a eleição de Narendra Modi transformar a Índia, transformará o mundo.
Já é possível identificar pelo menos três maneiras pelas quais a eleição foi notável.
Primeiro, a Índia demonstrou ainda uma vez a maior virtude da democracia: uma transferência pacífica de poder legítimo. Que isso seja possível em um país tão vasto, diversificado e pobre é uma realização política inspiradora.
Segundo, os indianos rejeitaram a política dinástica do Partido do Congresso, o que, infelizmente, trouxe o fim da carreira muito distinta de Manmohan Singh, um homem que admiro há quatro décadas, no serviço público. O mais importante governo do Partido do Congresso depois da era de Jawaharlal Nehru foi o de Narasimha Rao, no começo dos anos 90, ao qual Singh serviu como ministro reformista das Finanças. Se Modi conseguir sucesso, será porque terá aproveitado as fundações então estabelecidas. O Partido do Congresso continua a ter a melhor chance de ser o forte partido laico de que a Índia precisa, mas apenas se conseguir se libertar de sua dependência da família Gandhi.
Terceiro, Modi é um homem que subiu sozinho. Ainda que seu partido tenha conquistado apenas 31% dos votos, ele obteve maioria esmagadora na câmara baixa do Legislativo. E o fez ao prometer que expandiria ao restante do país os sucessos que aparenta ter conseguido no Estado de Gujarat. Na Índia há debate intenso sobre o Gujarat e sua possibilidade de servir como modelo. Mas isso não é o ponto mais importante. O que importa mais é que os indianos escolheram um líder que promete melhorar suas vidas. Ele não foi escolhido por suas origens. Isso é prova da transformação da Índia nos últimos 25 anos.
O governo que está deixando o poder foi condenado como fracasso. Mas, como aponta Shankar Acharya, assessor econômico dos governos indianos dos anos 90, "o crescimento econômico atingiu a média de 7,5% ao ano, o mais rápido de qualquer década da história da Índia. Esse rápido crescimento no PIB (Produto Interno Bruto) elevou a renda média em cerca de 75% em termos reais, considerada a inflação". Isso parece bom. Mas, ele acrescenta, também oculta a verdade.
O crescimento se desacelerou acentuadamente nos três últimos anos "devido ao acúmulo de más políticas econômicas", enquanto a inflação nos preços ao consumidor subiu para entre 9% e 11% nos últimos cinco anos. Ao mesmo tempo, diz Acharya, as políticas do governo foram piorando constantemente. Ele aponta para os gastos exorbitantes em subsídios ao petróleo, comida e fertilizantes, programas de benefícios perdulários, aumentos salariais exorbitantes e imensos deficit fiscais. Outros fracassos incluem a recusa de remover os desincentivos à criação de empregos, a preservação do capitalismo de compadres, regulamentação incoerente, tributação retrospectiva, saltos excessivos nos preços de aquisição de alimentos e corrupção.
Acharya argumenta que tudo isso contribuiu para um legado preocupante: o fracasso na criação de empregos para os 10 milhões de jovens que ingressam no mercado de trabalho a cada ano; a estagnação da indústria; infraestrutura inadequada; um grande acúmulo de projetos inacabados; vulnerabilidade da agricultura devido a problemas no abastecimento de água; programas de benefício mal geridos; enfraquecimento das finanças externas do país; e deterioração ainda maior na qualidade da governança.
Acharya é um analista sóbrio das realidades econômicas indianas, e foi colaborador muito próximo de Singh nos anos 90. Sua avaliação negativa é muito convincente. Mas a Índia certamente pode fazer melhor. As mais recentes estimativas sugerem que a renda per capita do país equivale a apenas 10% da norte-americana e a 50% da chinesa. Deve ser possível para a Índia recuperar esse atraso com velocidade ainda maior.
Modi foi eleito acima de tudo para acelerar o desenvolvimento. Mas se recordarmos o fracasso da campanha "Índia reluzente" de seu partido, o Bharatiya Janata, uma década atrás, ele precisa fazê-lo de maneira que beneficie a vasta maioria da população, e não apenas a elite.
Não está claro que Modi seja capaz de superar esses grandes desafios, em um país grande e complexo como a Índia. Seu lema - "menos governo e mais governança" - capturou bem o clima da população. Mas não está claro o que isso significará na prática.
Uma análise do JPMorgan sugere que na realidade "existe uma notável convergência no pensamento econômico mais amplo" dos dois partidos. As diferenças que existem estariam mais na implementação, uma área que os partidários de Modi também enfatizam. Isso sugere que o imposto sobre bens e serviços (um tributo nacional de valor adicionado) pode ser implementado, projetos de investimento podem ser acelerados, os preços da energia podem ser liberalizados, ações das empresas estatais podem ser vendidas - ainda que sem privatização plena - e a consolidação fiscal pode ser acelerada.
Tudo isso seria positivo, mas provavelmente insuficiente para propiciar a aceleração necessária na geração de crescimento e empregos. Novas reformas, igualmente vitais, precisam vir na regulamentação do emprego, educação e infraestrutura, com o objetivo de tornar a Índia uma base para a produção industrial com uso intensivo de mão de obra. Dada a alta dos salários na China, essa ambição é plausível. Uma melhora na administração da lei é crucial. A agricultura precisa de grandes avanços, o que inclui uma cadeia de suprimento mais moderna. Os Estados do país precisam ser forçados a competir uns contra os outros por pessoal, capital e tecnologia.
A eleição pode se provar um passo importante para a modernização econômica da Índia, relançada em 1991. Mas essa rodada de reformas também será mais difícil de realizar do que a precedente. Agora a questão não é só a de tirar o Estado do caminho. O que importa mais é tornar o governo um servo efetivo e honesto do povo indiano. Esse é um desafio de magnitude provavelmente uma ordem mais alta do que aqueles que Modi superou no governo do Gujarat.
Modi continua a ser um enigma. Ele é um homem de ação, um nacionalista e um membro dedicado do movimento Hindutva. É difícil acreditar que ele reagiria de modo tão brando quanto Singh à promoção do terrorismo pelo Paquistão. É impossível determinar o que ele significará para o relacionamento entre as diferentes comunidades indianas. Ninguém sabe, tampouco, que grau de obrigação ele sente para com os empresários que bancaram sua campanha. Mas uma coisa é certa: o jogo na Índia agora é novo. É preciso prestar atenção.