domingo, 28 de julho de 2013

GARGALOS NA INFRAESTRUTURA: O NOVO CANAL DO PANAMÁ E A NOSSA PÉSSIMA INFRAESTRUTURA

Com atraso na infraestrutura, Brasil vai desperdiçar novo canal do Panamá

DIMMI AMORA
DE BRASÍLIA


Um novo caminho está se abrindo para o comércio exterior do Brasil com seus principais parceiros, os países asiáticos. Mas atrasos na infraestrutura de transportes local podem fazer o país perder, ao menos inicialmente, essa oportunidade.
Ao custo de R$ 11 bilhões, a ampliação do canal do Panamá vai quase dobrar a capacidade atual de transporte de carga da superlotada passagem na América Central, por onde trafega grande parte das mercadorias que cruzam o Atlântico e o Pacífico.
O novo canal pode reduzir custos do comércio exterior brasileiro. Mas isso só será concretizado se o país efetivar as obras em estradas e ferrovias que farão a ligação de regiões produtoras ao Norte do país --especialmente de grãos-- com o Panamá.
O canal foi aberto em 1914. Em 2006, a empresa que o administra percebeu que sua capacidade de transporte de carga --de cerca de 750 milhões de toneladas anuais-- não suportaria o crescimento do comércio exterior.
Em 2013, ela chegou ao teto. O projeto é alcançar uma capacidade de fluxo de 1,2 bilhão de toneladas até 2025.
Cerca de 60% das obras estão concluídas. Os responsáveis pelo projeto acreditam que o novo canal estará em operação em junho de 2015. A previsão inicial era 2014.
O novo canal permitirá o uso de navios com mais que o dobro da capacidade atual. Isso porque as eclusas (mecanismo que permite a navegação em locais com desnível de água) atuais comportam navios de 290 metros de cumprimento e 12 metros de profundidade. Com as obras, passarão a atender navios de 400 metros por 15,2 metros.
BENEFÍCIOS
Para o Brasil, o novo canal poderá beneficiar as regiões Norte e Nordeste. Nelson Carlini, conselheiro da empresa de logística Logz, lembra que um navio que vai de Belém (PA) à China pelo Panamá chega três dias e meio antes do que se for pela Argentina (por onde gasta 45 dias).
"Isso [três dias a mais] hoje custa US$ 150 mil", calcula Nelson Carlini, apontando que o principal beneficiado será o setor agropecuário.
Luiz Fayet, consultor de logística da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, diz que 80 milhões de toneladas de soja e milho (57% do total) foram produzidas ao norte do país em 2012.
Dessa produção, apenas 25 milhões foram consumidos ou exportados pela região Norte. Um excedente de 55 milhões de toneladas desceu para o sul, provocando o caos logístico da última safra.
Essa situação torna os custos internos de transporte da soja no Brasil quatro vezes superiores aos dos concorrentes. Se os produtos agrícolas não forem escoados pelo Norte, a diferença de custo em relação aos produtos norte-americanos será ainda maior.
A BR-163, as ferrovias Norte-Sul e Transnordestina e novos terminais portuários em Belém (PA) e Itaqui (MA) seriam as vias para ligar regiões produtoras com a saída pelo norte e, de lá, ao Panamá. Para a próxima safra, em 2014, há alguma chance de a BR-163 estar pronta. As outras obras, só para a de 2015, se não sofrerem novos atrasos.




REVOLUÇÃO
As obras no canal são consideradas como uma nova revolução no setor logístico. Mathieu Floriani, diretor nas Américas da Deustch Post DHL, maior empresa do mundo em logística, indica que 28% das cargas da costa do Pacífico dos EUA vão se transferir para o Atlântico.
Portos americanos no Atlântico já estão em ampliação para receber navios maiores. Isso deve tornar mais barato o custo de transporte de mercadorias do país.

Michael Wilson, vice-presidente de operações na América da Hamburg Sud, uma das maiores operadoras de navios do mundo, diz que o novo canal será uma grande oportunidade para todos os países do Atlântico. Ele pondera que os portos precisam estar preparados para a maior quantidade de navios de contêineres que vão operar.

domingo, 21 de julho de 2013

A HISTÓRIA DA TRANSIBERIANA: A MAIOR FERROVIA DO MUNDO

TRANSIBERIANA: A MAIOR FERROVIA DO MUNDO

Por: Cláudio Mossé

Para aqueles que tiveram o privilégio de percorrê-lo, ele é bem mais do que uma experiência. Uma referência, um mito. Impossível esquecê-lo. Basta evocar o rolamento do caminho de ferro na imensidão siberiana – caleidoscópio de paisagens diversas – para despertar a curiosidade. A ferrovia mais longa do mundo – quase 10 mil quilômetros, um quarto da circunferência da Terra na altura do Equador – ainda inflama os espíritos.

Na taiga, entre as colinas e montes pelados, os complexos industriais do rio Ural ao lago Baikal – o mais profundo do planeta, localizado no sul da Sibéria – da Europa à Ásia, os vagões fora de moda repintados nas cores da Rússia pós-comunista oferecem um passeio ferroviário excepcional. No século XXI, essa linha de trem – cuja construção exigiu que florestas inteiras fossem abatidas, rios desviados, milhares de quilômetros de trilhos instalados e centenas de pontes construídas – ainda surpreende pelo gigantismo. Antes da ferrovia, para atravessar a Sibéria, utilizava-se o 
trakt, uma estrada de cascalho, mantida sob os cuidados de presidiários ou de mujiques, os exilados voluntários, para que os negociantes, militares e adversários banidos – tais como os dezembristas, os primeiros a se revoltar, em 1825, contra o regime czarista – não tivessem os ossos deslocados nas carroças ou trenós, a cada quilômetro.Os pioneiros Quando se iniciaram as obras, em 1890, Anton Tchekhov, viajando pelo trakt com destino à Ilha Sacalina, escreveu: “Eis-me em Ecaterimburgo (onde, em 1918, foram executados o czar Nicolau II e sua família), eu tenho o pé direito na Europa e o esquerdo na Ásia”. Se viajasse na década seguinte, poderia ter chegado de trem. Foi o tempo gasto para a instalação de 10 mil quilômetros de trilhos. Engenheiros e operários pagaram caro para construir esse colosso em tão pouco tempo.

Tudo começou em 1867, depois que o Império Russo, em dificuldades financeiras por conta da Guerra da Crimeia (1853-1856), vendeu o Alasca para os EUA. O governo russo percebeu, que a Sibéria, terra selvagem e de exílio onde somente os negociantes de pele faziam fortuna, dispunha de riquezas ainda não exploradas, entre elas as enormes jazidas de ouro. Como transportá-las, se não fosse por ferrovia? Assim, nasceu a ideia da Transiberiana. Desde que o projeto da ferrovia se tornou conhecido, as sugestões se multiplicaram – algumas delirantes, como a de comboios puxados por cavalos, na falta de carvão para alimentar as locomotivas a vapor...
Iniciativa militar As autoridades czaristas compreenderam rapidamente a importância econômica e estratégica de um trem que ligasse Moscou a Vladivostok, a jovem cidade construída em frente ao Japão, rival histórico da Rússia. Após o conflito franco-prussiano de 1870, a diplomacia russa percebeu que, no caso de guerra com os japoneses, a ferrovia seria um meio eficaz para transportar as tropas – o que foi confirmado em 1904. Pode-se dizer que a Transiberiana foi, a princípio, construída por militares e para militares.

Em 1875, a publicação do romance Michel Strogoff , de Júlio Verne, apresenta as terras desconhecidas da Sibéria Oriental ao grande público. O entusiasmo foi tamanho que, de forma inesperada, os chineses, invejosos da publicidade dada a essa região, interromperam as exportações de chá para a Rússia. Fosse boiardo ou mujique, ninguém ficou indiferente a essa medida: um dia inteiro sem chá era tão insuportável que, na Transiberiana do século XXI, continua-se a dar mais atenção à manutenção do samovar – um em cada carro – do que à do eixos...
GALERIA TRETYAKOV, MOSCOU
Para o ministro das Finanças Serguei Witte, ardor e fé eram fundamentais para uma obra tão monumental. Retrato do Ministro das Finanças e membro do Conselho de Estado Sergei Yulyevich Witte, óleo sobre tela, Ilya Repin, 1903
Embora no final do século XIX, o trem existisse somente nos documentos do Comitê das linhas férreas, a colonização das terras aráveis siberianas se acelerou. As pressões sobre o czar Alexandre III se intensificaram. O barão Korf, governador da Sibéria Oriental, repete que, do lado de Vladivostok, a via férrea seria uma espécie de muralha contra toda e qualquer invasão chinesa ou japonesa. Seu filho, o czareviche Nicolau, reteve a lição. Num documento assinado de próprio punho e datado de 29 de março de 1891, ele sela o destino da Transiberiana – ignorando que, 27 anos mais tarde, ele faria, naquela ferrovia, sua última viagem.

Diante de um casebre de madeira, ele instalou em Vladivostok o primeiro trilho. Para Serguei de Witte, ministro das Finanças, tanto o ardor quanto a fé nessas obras tornaram-se uma necessidade. As responsabilidades eram enormes: definir um traçado, achar materiais, recrutar os operários, que precisariam ser alimentados e alojados e ainda trabalhariam em condições climáticas extremas. Primeira decisão: a construção deveria ocorrer, simultaneamente, em três grandes áreas. Uma dificuldade maior surgiu: a travessia do lago Baikal.

A Sibéria não dispunha de estaleiros navais. Os comboios atravessavam essa extensão de água, verdadeiro mar interior, numa barca construída na Inglaterra e enviada em peças isoladas pelos trechos da linha já finalizados. De vocação militar, no início, a ferrovia devia ser protegida. Daí, a ideia de expandir em 11 centímetros a largura dos trilhos, fixada na Europa e na Ásia a 1,52 metro.

Os construtores foram declarados “heróis da pátria”, uma homenagem modesta para quem sofreu tanto. Após um dia inteiro cavando, atulhando, instalando vigas e trilhos, os trabalhadores eram transportados em carroças pelo trakt, de volta aos casebres de madeira mofada dispostos por seções de 5 km, distância que eles deveriam percorrer em caso de neve, vento ou calor escaldante, e sob o ataque constante de mosquitos. O abastecimento de provisões, água potável – e vodca – era problemático. Fossem engenheiros ou operários, esses homens famintos podiam se transformar em animais selvagens, capazes de estrangular um camarada por uma simples migalha de pão.
Milhares ficaram cegos Algumas estelas ao longo do caminho lembram aos passageiros que ali ocorreram mortes, muitas mortes. O ministro Witte escreveu um relatório destinado ao czar, que se solidarizou, ordenando somente a substituição dos defuntos por novas levas de trabalhadores – ninguém na capital procurou criar um serviço de saúde. Entre as vítimas figuram milhares de operários que ficaram cegos por causa de picadas de insetos.

Após a morte de Alexandre III, em 1894, boiardos e mujiques imploraram para que Nicolau II interrompesse as obras. O Transiberiana talvez nunca tivesse sido concluída não fosse a contribuição do rico industrial belga Georges Nagelmackers. Inventor dos vagões-leito, sob a sigla Pullman, ele sugere a Witte o lançamento de um trem “confortável” e chega a oferecer de presente um vagão-igreja. As obras, não mais sob tutela militar, continuam. Gustav Eiffel, o pai da torre, sempre à procura de um bom negócio, propõe o fornecimento de todo o percurso de vigotas metálicas.
Meretrizes de toda a Europa Quilômetro após quilômetro, o trilho avançava pela floresta boreal. Witte tem, então, uma revelação: o que falta aos homens? Mulheres! Por meio de pequenos anúncios, prostitutas, bem pagas, são trazidas de toda a Europa – e não da perversa Ásia! O czar concorda. Quantos siberianos são descendentes de meretrizes das calçadas de Paris!

WOUDLOPER/CREATIVE COMMONS
Estação de Krasnoyarsk, na Rússia, em agosto de 2006
Considerando que os industriais seriam os principais beneficiários do trem, Nagelmackers recorre aos mais afortunados. Sem resultado. Ele sopra, então, a Witte uma ideia, banal hoje em dia, mas original em 1898: uma viagem para a imprensa, de Moscou a Tomsk. Três carros com dois leitos, um vagão-salão com piano, uma cozinha delicada preparada por Auguste Escoffier. Oriundo da Côte d’Azur, esse chefe fez as delícias dos ricos russos, para os quais a Riviera é a antecâmara do paraíso. Todos aprovam a ideia, com exceção do czar: ele não queria que os estrangeiros tomassem conhecimento das terríveis condições de trabalho nas obras. A solução foi dar folga para todos os trabalhadores de 5 a 25 de agosto, durante toda a viagem, que se faz ao longo de 3 500 km. Os relatos dessa “fabulosa Sibéria” transbordavam de entusiasmo – mas nenhuma palavra sobre os deportados. O luxo oferecido justificava uma tal dissimulação?

O czar, entretanto, se voltou contra Witte por causa de gastos não justificados; o ministro das Finanças invocou epidemias, chuvas, rebeliões rapidamente reprimidas dos aldeões incompetentes empregados à força... E manteve seu cargo. Em 1903, a Transiberiana foi concluída. A partir do ano seguinte, ela provou sua utilidade. Quando, na noite de 9 de fevereiro, uma armada japonesa atracou em Port-Arthur, o czar, humilhado, gritou: “Que as tropas sejam enviadas pela ferrovia!”. Sim, mas... Sem dúvida instalados muito rapidamente, os trilhos entre Khabarovsk e Vladivostok apresentam vários defeitos. E o que tinha que acontecer, aconteceu: perto de Tchita, o trem descarrilou numa floresta, uma zona pouco povoada onde faltam provisões e água doce. Alguns militares morrem, outros perdem a razão ou fogem para a estepe – uma vasta escolha de presas para os ursos, tigres e lobos.

Assim, apesar da derrota, a Transiberiana mostrou sua utilidade e sua fragilidade.
Trem da insurreição Até 1916, os trens circularam. No ano seguinte, Churchill declarou: “A Batalha do Marne também foi ganha na linha do trem Transiberiano.” A Sibéria não era somente uma terra de deportação; o trem facilitava a rebelião, a linha de trem tornou-se símbolo da insurreição. Os amotinados, quando não eram fuzilados diante dos vagões, eles usam a sala de reunião.

Em 1918, após a revolução, o general tcheco Kolchak, tendo ocupado as estações, fez espalhar a existência de um Estado independente com o qual se sonhava. Mas em vão: ele é executado pelos milicianos soviéticos. Pai do Exército Vermelho, Trotski instala cinco vagões como casa, escritório e centro de espionagem cobrindo toda a Sibéria. De 1922 a 1940, Stalin instala próximo às vias os infames gulags, campos de trabalhos forçados.

Não nos enganemos: se civis e militares russos mantêm amáveis conversas – sob os olhos da 
provonitsa, a ferromoça que reina entre samovares e passageiros, o “trem n° 1”, sempre lotado, também facilita o desenvolvimento de práticas mafiosas. Sem, no entanto, espantar os cavalos selvagens que galopam através das montanhas Altai e da imensidão siberiana...
Claude Mossé é jornalista e autor de livro sobre a Transiberiana

segunda-feira, 15 de julho de 2013

COMO ERA PARIS NO SÉCULO XIV


UMA DESCRIÇÃO DA CIDADE DE PARIS NO SÉCULO XIV



Ile de La Cité - Paris

A cidade que Marcel (Etienne Marcel – Preboste dos Comerciantes, que correspondia à função de prefeito da cidade) governava cobria uma área que, em sua disposição atual ia desde os Grand Boulevards, na margem direita (do rio Sena), até o Jardim de Luxemburgo, na margem esquerda, e de leste para oeste estendia-se da Bastilha às Tulherias. Tudo que ficava além desses limites era faubourg, ou campo. O centro de Paris era a Ile de La Cité, no meio do Sena, na qual ficavam a catedral de Notre-Dame, o Hotel Dieu ou Hospital público, e o palácio real construído por São Luis (Luis IX, Rei de França – 1214-1270). A margem direita, que se estendera além das velhas muralhas, era o local do comércio, da indústria, dos mercados públicos, do comércio de luxo e das residências opulentas, ao passo que a margem esquerda, muito menor em área povoada, era dominada pela universidade. De acordo com um levantamento fiscal do ano de 1292, a cidade tinha, na época, 352 ruas, 11 ruas transversais, dez praças, 15 igrejas e 15 mil contribuintes. Cinquenta anos depois, na época de Marcel, sua população total, depois da Peste Negra, era provavelmente de cerca de 75 mil habitantes.
As principais ruas eram pavimentadas (com pedras) e bastante largas para a passagem de duas carroças ou carruagens, enquanto as outras eram estreitas, lamacentas e malcheirosas, com um esgoto correndo no meio. A rua era o local onde o cidadão médio lançava todos os detritos e dejetos, e nos bairros pobres havia, em geral, um monte de lixo em cada porta. Os moradores deveriam levar os depósitos de dejetos para poços próprios e eram lembrados, por repetidas determinações municipais, que tinham que pavimentar e varrer a entrada de suas casas.
O congestionamento do tráfego bloqueava as ruas estreitas quando tropas de burros, com cestos de ambos os lados, se encontravam com vendedores com suas bandejas, ou carregadores curvados sob feixes de lenha e sacos de carvão. Tabuleiros de tavernas (bares) presas a compridos postes de ferro aumentavam ainda mais o congestionamento. As tabuletas das lojas eram enormes, para atrair a atenção dos fregueses, pois os lojistas estavam proibidos de chamá-los enquanto estivessem na loja vizinha. Um dentista era representado por um dente do tamanhp de uma cadeira; o luveiro, por uma luva com dedos suficientemente grandes para conter uma criança.
O barulho das tabuletas agitadas ao vento competia com os gritos dos vendedores de rua, dos condutores de burros, o tropel dos cavalos e as comunicações dos pregoeiros públicos. (…) Os pregoeiros anunciavam, duas vezes ao dia, decretos oficiais, casas à venda, casamentos, novos impostos, crianças desaparecidas, funerais, nascimentos e batismos.
Cada ramo de comércio tinha sua própria rua – açougueiros e curtidores em volta do Châtelet, cambistas, ourives e negociantes de tecidos na Grand Pont, escribas e ilustradores de livros e vendedores de pergaminhos e tintas na margem esquerda, junto da universidade. Havia ainda lojas ao ar livre de chapeleiros, marceneiros, ceramistas, barbeiros, ferreiros, farmacêuticos, lavadores e peixeiros.
Em todos os bairros havia banhos públicos, tanto de vapor quanto de água quente. No início do século XIV, eram 26 os estabelecimentos desse tipo na cidade. Embora considerados uma ameaça para a moral, especialmente das mulheres, eram vistos como uma contribuição para a limpeza e a cidade se empenhava para mantê-los abertos, especialmente no inverno, quando o combustível encarecia. Não podiam admitir prostitutas, leprosos, homens de má reputação, vagabundos e não podiam abrir antes do amanhecer, já que à noite as ruas eram muito perigosas.
A água era fornecida à cidade por fontes públicas. Alimentadas por aquedutos que vinham de fora da cidade. Frutas, verduras e outros alimentos vinham especialmente de barco pelo rio, a partir dos faubourgs, a área rural.
Durante o dia, além do movimento do comércio, mendigos pediam esmola à porta das igrejas, monges mendicantes imploravam pão para suas ordens, mágicos e artistas estavam em toda parte, e contadores de histórias recitavam aventuras, especialmente dos combates em terras sarracenas (árabes)
(…) Aos domingos todos os negocios fechavam, o povo ia à igreja e, em seguida, os trabalhadores reuniam-se em tavernas, enquanto os burgueses passavam nos faubourgs.
As casas, em geral, eram modestamente mobliadas, mesmo em residências nobres. Havia poucas cadeiras e, geralmente, as camas serviam tanto para sentar quanto para dormir. As camas eram cobertas por cortinas, colchas decoradas e tapeçarias, nas casas nobres, ou por peles de animais, nas casas mais modestas, uma vez que eram mais baratas do que a lã.
O aquecimento era feito por lareiras embutidas nas paredes ou por fogões e caçarolas com brasas nas casas mais simples. A iluminação ficava por conta de tochas colocadas do lado de fora das casas, fixadas em muros e paredes externas, próximas às janelas.
Havia também poucos quartos, as pessoas dormiam juntas, inclusive os visitantes. Não havia privacidade. Os criados dormiam em qualquer lugar, em qualquer canto enrolados em suas peles.
O chão era coberto por palha e ervas aromáticas para encobrir o mal cheiro (os mais ricos espalhavam flores), especialmente no verão. Ficavam repletos de excrementos de animais, pulgas e outros insetos. Eram trocados quatro vezes por ano, ou uma vez por ano, nas casas mais pobres.
Ao anoitecer, o sino dava o toque de recolher, anunciando a hora do fechamento, o trabalho cessava, as lojas eram fechadas, o silêncio substituia a agitação. Às oito horas a cidade ficava às escuras. Apenas as esquinas eram iluminadas por velas ou lâmpadas a òleo colocadas em nichos de Nossa Senhora ou do Santo Padroeiro do bairro. Ninguém ousava sair à noite.
As ruas não tinham nome, de modo que as pessoas eram obrigadas a procurar durante horas para encontarar o lugar desejado


Texto Adaptado de: “Um Espelho Distante: O Terrível Século XIV” - de Bárbara W. Tuchman

domingo, 7 de julho de 2013

TEMPOS DIFÍCEIS - ANÁLISE: FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Tempos difíceis
07 de julho de 2013 | 2h 04







FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Já se disse tudo, ou quase tudo, sobre os atos públicos em curso. Para quem acompanha as transformações das sociedades contemporâneas não surpreende a forma repentina e espontânea das manifestações.
Em artigo publicado nesta coluna, há dois meses, resumi estudos de Manuel Castells e de Moisés Naím sobre as demonstrações na Islândia, na Tunísia, no Egito, na Espanha, na Itália e nos Estados Unidos. As causas e os estopins que provocaram os protestos variaram: em uns, a crise econômico-social deu ânimo à reação das massas; em outros, o desemprego elevado e a opressão política foram os motivos subjacentes aos protestos.
Tampouco as consequências foram idênticas. Em algumas sociedades onde havia o propósito específico de derrubar governos autoritários, o movimento conseguiu contagiar a sociedade inteira, obtendo sucesso. Resolver uma crise econômico-social profunda, como nos países europeus, torna-se mais difícil. Em certas circunstâncias, consegue-se até mesmo alterar instituições políticas, como na Islândia. Em todos os casos mencionados, os protestos afetaram a conjuntura política e, quando não vitoriosos em seus propósitos imediatos, acentuaram a falta de legitimidade do sistema de poder.
Os fatos que desencadeiam esses protestos são variáveis e não necessariamente se prendem à tradicional motivação da luta de classes. Mesmo em movimentos anteriores, como a "revolução de maio" em Paris (1968), que se originou do protesto estudantil "por um mundo melhor", tratava-se mais de uma reação de jovens que alcançou setores médios da sociedade, sobretudo os ligados às áreas da cultura, do entretenimento, da comunicação social e do ensino, embora tivesse apoiado depois as reivindicações sindicais. Algo do mesmo tipo se deu na luta pelas Diretas-Já. Embora antecedida pelas greves operárias, ela também se desenvolveu a partir de setores médios e mesmo altos da sociedade, aparecendo como um movimento "de todos". Não há, portanto, por que estranhar ou desqualificar as mobilizações atuais por serem movidas por jovens, sobretudo das classes médias e médias altas, nem, muito menos, de só por isso considerá-las como vindas "da direita".
O mais plausível é que haja uma mistura de motivos, desde os ligados à má qualidade de vida nas cidades (transportes deficientes, insegurança, criminalidade), que afetam a maioria, até os processos que atingem especialmente os mais pobres, como dificuldade de acesso à educação e à saúde e, sobretudo, baixa qualidade de serviços públicos nos bairros onde moram e dos transportes urbanos. Na linguagem atual das ruas, é "padrão Fifa" para uns e padrão burocrático-governamental para a maioria. Portanto, desigualdade social. E, no contexto, um grito parado no ar contra a corrupção - as preferências dos manifestantes por Joaquim Barbosa (ministro presidente do Supremo Tribunal Federal) não significam outra coisa. O estopim foi o custo e a deficiência dos transportes públicos, com o complemento sempre presente da reação policial acima do razoável. Mas se a fagulha provocou fogo foi porque havia muita palha no paiol.
A novidade, em comparação com o que ocorreu no passado brasileiro (nisso nosso movimento se assemelha aos europeus e norte-africanos), é que a mobilização se deu pela internet, pelos twitters e pelos celulares, sem intermediação de partidos ou organizações e, consequentemente, sem líderes ostensivos, sem manifestos, panfletos, tribunas ou tribunos. Correlatamente, os alvos dos protestos são difusos e não põem em causa de imediato o poder constituído nem visam questões macroeconômicas, o que não quer dizer que esses aspectos não permeiem a irritação popular.
Complicador de natureza imediatamente política foi o modo como as autoridades federais reagiram. Um movimento que era "local" - mexendo mais com os prefeitos e governadores - se tornou nacional a partir do momento em que a presidenta chamou a si a questão e a qualificou primordialmente, no dizer de Joaquim Barbosa, como uma questão de falta de legitimidade. A tal ponto que o Planalto pensou em convocar uma Constituinte e agora, diante da impossibilidade constitucional disso, pensa resolver o impasse por meio de plebiscito. Impasse, portanto, que não veio das ruas.
A partir daí o enredo virou outro: o da relação entre Congresso Nacional, Poder Executivo e Judiciário e a disputa para ver quem encaminha a solução do impasse institucional, ou seja, quem e como se faz uma "reforma eleitoral e partidária". Assunto importante e complexo, que, se apenas desviasse a atenção das ruas para os palácios do Planalto Central e não desnudasse a fragilidade destes, talvez fosse bom golpe de marketing. Mas, não. Os titubeios do Executivo e as manobras no Congresso não resolvem a carestia, a baixa qualidade dos empregos criados, o encolhimento das indústrias, os gargalos na infraestrutura, as barbeiragens na energia, e assim por diante.
O foco nos aspectos políticos da crise - sem que se negue a importância deles - antes agrava do que soluciona o "mal-estar", criado pelos "malfeitos" na política econômica e na gestão do governo. O afunilamento de tudo numa crise institucional (que, embora em germe, não amadurecera na consciência das pessoas) pode aumentar a crise, em lugar de superá-la.
A ver. Tudo dependerá da condução política do processo em curso e da paciência das pessoas diante de suas carências práticas, às quais o governo federal preferiu não dirigir preferencialmente a atenção. E dependerá também da evolução da conjuntura econômica. Esta revela a cada passo as insuficiências advindas do mau manejo da gestão pública e da falta de uma estratégia econômica condizente com os desafios de um mundo globalizado.



FERNANDO HENRIQUE CARDOSO É SOCIÓLOGO E FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA