Tempos
difíceis
07
de julho de 2013 | 2h 04
FERNANDO
HENRIQUE CARDOSO
Já
se disse tudo, ou quase tudo, sobre os atos públicos em curso. Para
quem acompanha as transformações das sociedades contemporâneas não
surpreende a forma repentina e espontânea das manifestações.
Em
artigo publicado nesta coluna, há dois meses, resumi estudos de
Manuel Castells e de Moisés Naím sobre as demonstrações na
Islândia, na Tunísia, no Egito, na Espanha, na Itália e nos
Estados Unidos. As causas e os estopins que provocaram os protestos
variaram: em uns, a crise econômico-social deu ânimo à reação
das massas; em outros, o desemprego elevado e a opressão política
foram os motivos subjacentes aos protestos.
Tampouco
as consequências foram idênticas. Em algumas sociedades onde havia
o propósito específico de derrubar governos autoritários, o
movimento conseguiu contagiar a sociedade inteira, obtendo sucesso.
Resolver uma crise econômico-social profunda, como nos países
europeus, torna-se mais difícil. Em certas circunstâncias,
consegue-se até mesmo alterar instituições políticas, como na
Islândia. Em todos os casos mencionados, os protestos afetaram a
conjuntura política e, quando não vitoriosos em seus propósitos
imediatos, acentuaram a falta de legitimidade do sistema de poder.
Os
fatos que desencadeiam esses protestos são variáveis e não
necessariamente se prendem à tradicional motivação da luta de
classes. Mesmo em movimentos anteriores, como a "revolução de
maio" em Paris (1968), que se originou do protesto estudantil
"por um mundo melhor", tratava-se mais de uma reação de
jovens que alcançou setores médios da sociedade, sobretudo os
ligados às áreas da cultura, do entretenimento, da comunicação
social e do ensino, embora tivesse apoiado depois as reivindicações
sindicais. Algo do mesmo tipo se deu na luta pelas Diretas-Já.
Embora antecedida pelas greves operárias, ela também se desenvolveu
a partir de setores médios e mesmo altos da sociedade, aparecendo
como um movimento "de todos". Não há, portanto, por que
estranhar ou desqualificar as mobilizações atuais por serem movidas
por jovens, sobretudo das classes médias e médias altas, nem, muito
menos, de só por isso considerá-las como vindas "da direita".
O
mais plausível é que haja uma mistura de motivos, desde os ligados
à má qualidade de vida nas cidades (transportes deficientes,
insegurança, criminalidade), que afetam a maioria, até os processos
que atingem especialmente os mais pobres, como dificuldade de acesso
à educação e à saúde e, sobretudo, baixa qualidade de serviços
públicos nos bairros onde moram e dos transportes urbanos. Na
linguagem atual das ruas, é "padrão Fifa" para uns e
padrão burocrático-governamental para a maioria. Portanto,
desigualdade social. E, no contexto, um grito parado no ar contra a
corrupção - as preferências dos manifestantes por Joaquim Barbosa
(ministro presidente do Supremo Tribunal Federal) não significam
outra coisa. O estopim foi o custo e a deficiência dos transportes
públicos, com o complemento sempre presente da reação policial
acima do razoável. Mas se a fagulha provocou fogo foi porque havia
muita palha no paiol.
A
novidade, em comparação com o que ocorreu no passado brasileiro
(nisso nosso movimento se assemelha aos europeus e norte-africanos),
é que a mobilização se deu pela internet, pelos twitters e pelos
celulares, sem intermediação de partidos ou organizações e,
consequentemente, sem líderes ostensivos, sem manifestos, panfletos,
tribunas ou tribunos. Correlatamente, os alvos dos protestos são
difusos e não põem em causa de imediato o poder constituído nem
visam questões macroeconômicas, o que não quer dizer que esses
aspectos não permeiem a irritação popular.
Complicador
de natureza imediatamente política foi o modo como as autoridades
federais reagiram. Um movimento que era "local" - mexendo
mais com os prefeitos e governadores - se tornou nacional a partir do
momento em que a presidenta chamou a si a questão e a qualificou
primordialmente, no dizer de Joaquim Barbosa, como uma questão de
falta de legitimidade. A tal ponto que o Planalto pensou em convocar
uma Constituinte e agora, diante da impossibilidade constitucional
disso, pensa resolver o impasse por meio de plebiscito. Impasse,
portanto, que não veio das ruas.
A
partir daí o enredo virou outro: o da relação entre Congresso
Nacional, Poder Executivo e Judiciário e a disputa para ver quem
encaminha a solução do impasse institucional, ou seja, quem e como
se faz uma "reforma eleitoral e partidária". Assunto
importante e complexo, que, se apenas desviasse a atenção das ruas
para os palácios do Planalto Central e não desnudasse a fragilidade
destes, talvez fosse bom golpe de marketing. Mas, não. Os titubeios
do Executivo e as manobras no Congresso não resolvem a carestia, a
baixa qualidade dos empregos criados, o encolhimento das indústrias,
os gargalos na infraestrutura, as barbeiragens na energia, e assim
por diante.
O
foco nos aspectos políticos da crise - sem que se negue a
importância deles - antes agrava do que soluciona o "mal-estar",
criado pelos "malfeitos" na política econômica e na
gestão do governo. O afunilamento de tudo numa crise institucional
(que, embora em germe, não amadurecera na consciência das pessoas)
pode aumentar a crise, em lugar de superá-la.
A
ver. Tudo dependerá da condução política do processo em curso e
da paciência das pessoas diante de suas carências práticas, às
quais o governo federal preferiu não dirigir preferencialmente a
atenção. E dependerá também da evolução da conjuntura
econômica. Esta revela a cada passo as insuficiências advindas do
mau manejo da gestão pública e da falta de uma estratégia
econômica condizente com os desafios de um mundo globalizado.
FERNANDO
HENRIQUE CARDOSO É SOCIÓLOGO E FOI PRESIDENTE DA
REPÚBLICA
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