Mas
Lopes Trovão e outros militantes republicanos, buscando tirar o
máximo proveito político da ação da polícia, recusaram o
encontro. Divulgaram um manifesto dirigido ao soberano,
convocando-o a ir ao encontro do povo. A Gazeta da Noite de Lopes
Trovão e panfletos distribuídos pela cidade passaram a pregar o
boicote da taxa e a incitar a população a reagir com violência,
arrancando os trilhos dos bondes. Outra manifestação foi
convocada para o dia 1º de janeiro, data da entrada em vigor da
taxa, agora no centro da cidade, no Largo do Paço, hoje Praça 15
de Novembro.
Nesse dia, a taxa estava sendo paga até que, ao
meio dia, a multidão se reuniu no local previsto. Percebendo
talvez a enrascada em que se metera, Lopes Trovão não incitou a
multidão à ação. A massa moveu-se, então, pelas ruas do centro
aplaudindo as redações dos jornais de oposição e se dirigiu ao
Largo de São Francisco, ponto final de várias linhas de bonde. Em
frente ao prédio da Gazeta da Noite, o próprio Trovão fez um
apelo aos manifestantes para que se dispersassem. Mas àquela
altura ele já perdera o controle dos acontecimentos. A massa
popular concentrou-se nos arredores da Rua Uruguaiana e do Largo de
São Francisco. O delegado que comandava as tropas da polícia
pediu reforços ao Exército, mas, antes que a ajuda chegasse,
ordenou à polícia que dispersasse a multidão a cacetadas.
A
um grito de “Fora o vintém!”, os manifestantes começaram a
espancar condutores, esfaquear mulas, virar bondes e arrancar
trilhos ao longo da rua Uruguaiana. Dois pelotões do Exército
ocuparam o Largo de S. Francisco, postando-se parte da tropa em
frente à Escola Politécnica, atual prédio do Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. O povo, que só detestava a
polícia, aplaudiu a tropa. Mas alguns mais exaltados passaram a
arrancar paralelepípedos e atirá-los contra os soldados. Por
infelicidade, um deles atingiu justo o comandante da tropa,
tenente-coronel Antônio Enéias Gustavo Galvão, primo de Deodoro
da Fonseca, militar que uma década depois se tornaria o primeiro
presidente do Brasil. O oficial descontrolou-se e ordenou fogo
contra a multidão.
As
estatísticas de mortos e feridos são imprecisas. Falou-se em 15 a
20 feridos e em três a dez mortos. Entre os últimos, estavam
estrangeiros e o flautista Loló, condutor da Cia. de São
Cristóvão, atingido por uma pedrada. A multidão dispersou-se e,
salvo pequenos distúrbios nos três dias seguintes, estava findo o
motim do vintém. A cobrança da taxa passou a ser quase aleatória.
As próprias companhias de bondes pediam ao governo que a
revogasse. Desmoralizado, o ministério caiu a 28 de março. O novo
ministério revogou o desastrado tributo.
A
capital do Império estava acostumada a distúrbios de rua. Vivera
em quase permanente agitação entre 1820 e 1840. Nessa última
data, o povo exigiu na rua a maioridade do imperador. A partir daí,
no entanto, refletindo a estabilização política do Segundo
Reinado, reduzira-se muito a agitação. A tranqüilidade das ruas
só fora quebrada nos protestos contra Christie, quando a multidão,
liderada por Teófilo Otoni, ameaçou comerciantes ingleses e
aplaudiu a ação do imperador. O que a trouxe de volta em 1879?
Em
1878, depois de 10 anos de domínio conservador, subira ao poder o
gabinete liberal de Sinimbu, encarregado de fazer a reforma
eleitoral. Dividido por conflitos internos, desagradou a gregos e
troianos. Os republicanos estavam furiosos com Lafaiete Rodrigues
Pereira, ministro da Justiça, que assinara o Manifesto Republicano
de 1870, e agora se bandeava para o campo liberal. A principal
fonte de insatisfação, no entanto, vinha da política fiscal do
ministro da Fazenda, Afonso Celso de Assis Figueiredo, futuro
visconde de Ouro Preto, que tinha fama de excelente administrador e
financista. Para enfrentar as dificuldades financeiras geradas
pelos enormes gastos com a grande seca de 1877 no norte do país,
propôs ele no projeto de lei orçamentária de 1879, aprovado pela
Câmara, vários aumentos de impostos antigos e a introdução de
alguns novos. Atingiu o bolso de todos, proprietários de escravos,
aspirantes a títulos nobiliárquicos, fumantes, amantes do vinho,
comerciantes e simples cidadãos. As medidas mais irritantes foram
o novo imposto sobre vencimentos dos funcionários públicos, o
antepassado do imposto de renda, e a taxa de um vintém sobre o
valor das passagens no transporte urbano.
O
novo imposto e a taxa atingiram diretamente duas categorias, os
funcionários públicos e os usuários de bondes. Em 1870, a
capital tinha 192 mil habitantes na área urbana, dos quais 11 mil
funcionários públicos, entre civis, militares e eclesiásticos,
já que naquela época o catolicismo era a religião oficial do
Estado. Havia quatro grandes companhias de ferro-carris urbanos, ou
de bondes, como ficaram conhecidos: a Botanical Garden Co., que
cobria a zona sul, saindo da rua Gonçalves Dias, a Cia. de São
Cristóvão, concentrada na zona norte, com ponto final no Largo de
São Francisco, a Ferro-carril de Vila Isabel, que partia da
Praça Tiradentes, e a Cia. de Carris Urbanos, que atendia ao
centro, incluindo a zona portuária.
O
bonde era um transporte de massa. Cada carro, puxado por animais
sobre trilhos, transportava 30 passageiros. Só as três primeiras
companhias acima listadas transportaram em 1879 mais de 20 milhões
de passageiros. É óbvio que a taxa do vintém jogava muita gente
contra o governo, sobretudo contra o Afonso Vintém, como ficou
conhecido o ministro da Fazenda. Para atingi-los, foram atacadas no
dia primeiro as companhias de bondes, com exceção da Botanical
Garden, de propriedade norte-americana, que se prontificou a pagar
ela mesma a taxa.
Desse
clima de insatisfação, tiraram vantagem os agitadores
republicanos. Ao que parece, na demonstração de São Cristóvão
estavam presentes, sobretudo, pessoas de melhor situação social,
certamente muitos funcionários públicos. Na do dia 1º, teria
entrado em ação a massa dos usuários mais pobres, acrescida da
tropa barra-pesada do centro e da zona portuária. Não por acaso,
os líderes do movimento perderam o controle da multidão nesse
dia.
Embora
legal, a taxa do vintém era profundamente impolítica, como se
dizia na época. O ministro fora alertado para as possíveis
reações. Mas Afonso Celso era tão competente quanto teimoso.
Pagou por isso alto preço em 1880, como pagaria em 1889, por
ocasião da proclamação da República. A reação da polícia foi
infeliz em 28 de dezembro, ao não negociar a audiência com o
imperador, e imprudente em 1º de janeiro. A do Exército,
simplesmente desastrada.
Os
acontecimentos chocaram o Imperador. Em cartas à condessa de
Barral e ao conde de Gobineau, afirmou que em 40 anos de reinado
nunca tinha sido usada a força contra o povo da capital do
Império. Não lhe escapou mesmo a conotação republicana dos
incitadores do motim. Afirmou à condessa que seria mais feliz como
presidente de uma república.
Mas
a revolta não foi republicana, afirmaram seus próprios líderes.
Muitos interesses feridos nela se fundiram, de grandes e de
políticos, de gente miúda e de simples cidadãos. Uma grande
explosão social, detonada por um pobre vintém.
José
Murilo de Carvalho é
professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
membro da Academia Brasileira de Letras, do IHGB e da Academia
Brasileira de Ciências e autor de D. Pedro II: ser ou não ser.
São Paulo: Cia. das Letras, 2007.
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