SIDARTA
RIBEIRO - O Estado de S.Paulo
No
vórtex contestatório que levanta pessoas em todo o planeta, eis que
chega ao Brasil a ira santa contra a experimentação animal.
Ativistas invadem laboratórios e retiram cães, para desespero dos
cientistas que pesquisavam remédios oncológicos com esses animais.
Confrontam-se argumentos. Há ética em submeter beagles adoráveis à
experimentação fria? Por outro lado, será ético criar cães em
apartamentos minúsculos, permitindo que desenvolvam problemas renais
por baixa frequência de micção e obesidade por falta de exercício?
Os ativistas acham que os cientistas são uns animais e vice-versa,
como se isso fosse a maior ofensa.
O
tema é forte e mobiliza paixões. São inegáveis os avanços para a
saúde humana obtidos graças à experimentação animal, tais como
vacinas, antibióticos, transplantes e reconstituição de órgãos.
Sem a vivissecção, seria hoje impossível seguir avançando nas
pesquisas sobre câncer, aids e doenças degenerativas, entre muitas
outras. Mas se a pesquisa científica é patrimônio da humanidade,
não há quem não se compadeça de um cãozinho melancólico.
O
momento é oportuno para questionar injustiças e olhar de frente a
questão dos direitos dos animais. Em perspectiva, nosso sucesso como
espécie depende há milhares de anos da exploração de outras
formas de vida. Nossos ancestrais nômades aprenderam a extrair de
outros seres vivos seus alimentos, remédios, vestuário e serviços
variados, domesticando espécies e criando novas raças a serviço do
bicho homem. Não é exagero dizer que, sem tal domínio de outros
seres, não haveria civilização. Portanto, o uso dos animais pela
ciência nos últimos séculos, seja para compreender a biologia ou
para resolver problemas práticos das pessoas, se configurou num
contexto em que animais são coisas.
O
problema é que não são. Animais possuem sistemas nervosos e isso
cria um problema moral. Possivelmente todos os animais sentem dor e
são capazes de tentar evitar sofrimento. Inúmeras espécies de
vertebrados e mesmo invertebrados exibem algum tipo de cuidado
parental. A consciência não é um dom exclusivamente humano, mas
uma função fisiológica que, apesar de mal compreendida em seus
mecanismos, ocorre sob distintas formas em muitas espécies
diferentes. Levar em consideração todos esses aspectos é algo
recente entre nós, homens e mulheres herdeiros de milênios de
escravismo, utilitarismo e mesmo canibalismo. O passado da humanidade
é prenhe de violência e brutalidade, mas também somos capazes de
solidariedade e respeito ao próximo.
Por
isso é fundamental lembrar que é justamente no âmbito da ciência
que mais se avançou para dar aos animais tratamento condizente com
sua condição sensorial e afetiva. No Brasil de algumas décadas
atrás, não havia normas claras para a pesquisa experimental com
modelos animais. Com a promulgação da Lei Arouca (Nº 11.794, de 8
de Outubro de 2008), passamos a dispor de uma moderna legislação
para regular as Comissões de Ética no Uso de Animais (Ceuas) e o
Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea).
Hoje a pesquisa científica brasileira obedece a padrão
internacional que inibe sofrimento desnecessário ou extremo, limita
o número de animais utilizados e normatiza a supervisão da pesquisa
com animais.
Erra
o alvo quem ataca a ciência, pois essa não apenas se preocupa com o
bem-estar dos animais como avança no sentido de compreendê-los. Se
quisermos realmente encarar o inferno do desrespeito ao outro ser
vivo, miremos corajosamente onde isso é mais gritante: os criatórios
e abatedouros de gado e aves. Infelizmente ainda é comum que esses
animais sejam mantidos em ambientes insalubres e superlotados,
submetidos a regimes de estimulação sensorial anormal, alimentação
excessiva, manipulação hormonal, mutilação, castração e pânico
da morte anunciada. Tudo isso em uma escala tão colossal que não se
dá ao bicho mais do que um número e um carimbo da vigilância
sanitária. Se cada pessoa que come carne tivesse plena consciência
de tudo isso ao ingerir o alimento, haveria tamanho consumo desse
produto? O que podemos fazer para diminuir tanto sofrimento? A carne
de laboratório, livre de sistema nervoso, rica cultura de tecidos
muscular, conjuntivo e adiposo, já é uma realidade. No futuro
próximo, tem grande probabilidade de tornar-se mais barata, saborosa
e saudável que a carne do animal de criação. Quem quer picanha de
laboratório?
Se
quisermos realmente visitar a estação final de horrores daquilo que
pulsa e empatiza, desçamos às prisões, delegacias, masmorras,
escravarias e outros centros de desespero de nosso tempo. Ali onde
sofre e trucida a fera humana, atrás das grades e dentro do saco
plástico universal, quem vai salvar quem? Muitos dirão que esses,
os humanos aprisionados e torturados, são bichos culpados que
merecem o suplício. E no entanto, como ensinam o cristianismo, a
psicanálise e a neurociência, aqueles são sofredores como todos
nós, afetados pela genética e pelo ambiente, por vezes levados a
loucuras pela necessidade das encruzilhadas. Somos todos de carne e
osso e o desafio é conviver em paz. Como na canção de Gil, "não
há o que perdoar. Por isso mesmo é que há de haver mais
compaixão".
*SIDARTA
RIBEIRO É PROFESSOR TITULAR DE NEUROCIÊNCIAS DA UFRN