11/05/2013
-Folha de São Paulo
Ditadura da maioria
FOLHA
DE SÃO PAULO
Não
faz muito tempo, ouvi um deputado afirmar que o que define um governo
democrático é a eleição.
Se
foi eleito, é democrático.
Todos
sabemos que não é bem assim, pois, conforme a força que tenha
sobre as instituições, pode um governo impor sua vontade e anular o
direito dos adversários. A eleição é, sem dúvida, uma condição
necessária para que se constitua um governo democrático, mas não é
suficiente.
Se
abordo esta questão aqui é porque vejo naquela simplificação uma
ameaça à democracia, fenômeno crescente em vários países da
América Latina e até mesmo no Brasil. Na verdade, essa é uma das
manifestações antidemocráticas do neopopulismo, hoje hegemônico
em alguns países latino-americanos.
Já
defini esse novo populismo como o caminho que tomou certa esquerda
radical, ao constatar a inviabilidade de seus propósitos ditos
revolucionários. Não se trata mais de opor a classe operária à
burguesia, mas de opor os pobres aos ricos.
O
populismo age correta e legitimamente quando busca melhorar as
condições de vida dos setores mais carentes da sociedade, o que lhe
permite conquistar uma ampla base eleitoral. Mas se torna uma ameaça
à democracia quando usa esse poder político para calar a voz dos
opositores e, desse modo, eternizar-se no poder.
Exemplo
disso foi o governo de Hugo Chávez na Venezuela. O domínio dos
diferentes poderes do Estado permitiu ao chavismo manter-se no
governo mesmo após a morte de seu líder, violando abertamente todas
as normas constitucionais. Essa tese de que basta ter sido eleito
para ser um governo democrático é conveniente ao populismo porque,
contando com o apoio da maioria da população, usa-o como um aval
para fazer o que quiser.
Está
implícita nessa atitude uma espécie de sofisma, segundo o qual, se
o povo é dono do poder, quem contraria sua vontade é que atenta
contra a democracia. E quem sabe o que o povo quer é o caudilho.
Sucede
que o governante eleito, como todos os demais cidadãos, está
sujeito às leis, que estabelecem limites à ação de qualquer um,
inclusive dos governantes. Não por acaso, todos eles, ao tomarem
posse depois de eleitos, juram obedecer e seguir as normas
constitucionais.
No
Brasil agora mesmo, o populismo petista demonstra inconformismo com
essas normas que o impedem de fazer o que queira. A condenação dos
corruptos do mensalão pelo Supremo Tribunal Federal levou-os a
tentar desqualificar aquela corte de Justiça, acusando-a de ter
realizado um julgamento político e não jurídico.
Como
tais alegações não têm fundamento nem dificilmente mudariam a
decisão tomada, resolveram alterar a Constituição para de algum
modo anular a autonomia do STF.
Por
iniciativa de um deputado petista, foi aprovada pela Comissão de
Constituição e Justiça da Câmara uma emenda constitucional que
resultaria em submeter decisões do Supremo Tribunal à aprovação
do Congresso, numa flagrante violação da autonomia dos poderes da
República, base do regime democrático.
Essa
iniciativa provocou revolta nos mais diversos setores da opinião
pública e até mesmo a Presidência da República, por meio do
vice-presidente Michel Temer, procurou desautorizá-la. Não
obstante, os presidentes da Câmara e do Senado manifestaram seu
descontentamento a supostas intervenções do STF nas decisões do
Congresso.
Com
o mesmo propósito, tenta-se excluir do Ministério Público a
atribuição de investigar e processar os responsáveis por crimes na
área pública.
É
que o populismo não tolera nada que lhe imponha limites e o
critique. Por isso mesmo, um de seus inimigos naturais é a imprensa
livre, de que a opinião divergente dispõe para se fazer ouvir.
Na
Argentina, o populismo de Cristina Kirchner estatizou a única
empresa que fornece papel aos jornais do país, o que significa uma
ameaça a todo e qualquer jornal que se atreva a criticar-lhe as
decisões além do que ela permita.
Quando
consuma seus objetivos, o populismo estabelece o que ficou conhecido
como a ditadura da maioria. Denominação, aliás, pouco apropriada,
já que, nestes casos, o poder é, de fato, exercido por um líder
carismático, a quem a maioria do povo segue cegamente.
Autor:
Ferreira Gullar – Cronista, Crítico de Arte e Poeta.
PS:
Para quem não sabe ou não quer lembrar, Ferreira Gullar é um
ativista político histórico neste país. Militou no PCB e foi
sempre vigiado e perseguido durante a Ditadura Militar. Gostaria de
ver alguém do PT chamar Ferreira Gullar de “direita” ...
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