MATAR É
FÁCIL: DIFÍCIL É NÃO MORRER.
Nos
últimos meses, ando e andam falando e pensando muito sobre questões
relativas a mortes por arma de fogo. Isso se deve ao aumento da
violência praticada com armas de fogo no Brasil e também por
episódios nos EUA, como os atiradores em escolas que levaram o
presidente Obama a iniciar uma campanha por um maior controle sobre
a venda de armas no país. E, mais recentemente, pela morte acidental
de uma garota pela arma de um garoto.
Vejo,
aqui neste meu Brasil, muita gente “escandalizada” com a relação
que os norte-americanos tem com as armas de fogo, por exemplo. Essa é
uma discussão antiga, na verdade, que remete às características
históricas da Constituição dos EUA e de sua própria cultura.
Nos EUA,
a Constituição entende que é direito do cidadão proteger-se e
defender seu patrimônio e sua vida, entrando aí a liberdade para a
compra e porte de armas de fogo de qualquer espécie, sejam
automáticas, semi-automáticas ou manuais e de qualquer calibre que
o cidadão deseje ou prefira. Como o federalismo nos EUA é bastante
diferente do federalismo no Brasil, tradicional e historicamente
“contaminado” pelo autoritarismo e pelo centralismo excessivos,
cada estado pode determinar o grau dessa liberdade de compra e porte
de armas. Como resultado disso, em alguns estados, há uma enorme
liberdade para isso, bastando ir à loja e comprar, como se compra
qualquer outro produto – e há lojas imensas, verdadeiros
“supermercados” de armas e munições onde o cidadão passei,
escolhe... e enche seu carrinho. Já em outros estados, há um
controle bem maior, exigindo alguns documentos, registros mais
precisos e venda controlada de munição.
Tradicionalmente,
os estados do sul e do Oeste, são os estados onde há maior
liberdade, e, por via de consequência, os estados do leste e do
norte são os estados onde há maior controle – destacando o estado
de Nova Iorque, que é o estado que mais controla a venda de armas e
munições e o porte de armas.
(Loja de Armas nos EUA)
Pois bem,
isto posto, prossigo dizendo que comecei a pesquisar sobre o assunto,
mais profundamente. Principalmente por conta de comentários
estapafúrdios e estruturalmente contraditórios que encontrei por
aí, especialmente nas redes sociais, claro, que colecionam todo tipo
de besteira que antigamente circulação à boca pequena, mas que
hoje as pessoas disparam a esmo por aí, evidenciando as mais
curiosas teorias que vão desde o primarismo calcado sobre
desinformação, até as conspirações mais cabeludas, calcadas,
provavelmente, em sérios problemas de deformação pessoal ou doença
mental mesmo.
Por outro
lado, fiz uma espécie de mergulho nas minhas mais tenras memórias e
experiências envolvendo as armas de fogo. Neste processo, descobri
um Brasil um tanto “pessoal”, e talvez até jurássico, o que não
é de se espantar, já que não sou mais um garoto há pelo menos
algumas décadas – isto tem se mostrado, no Brasil em que vivo
hoje, uma virtude inestimável e uma ferramenta da maior utilidade,
diante de uma superficialidade absoluta e do espaço conquistado por
formas de pensamento e ideologias de uma fragilidade total mas de
grande efeito “midiático”. Em resumo, e para não alongar este
aspecto da coisa, gostaria de afirmar a minha imensa felicidade em
NÃO ser jovem no Brasil de hoje – é realmente um alívio enorme
já ter certos valores formados, diante de um país onde os valores e
as convicções tem a substância de uma casquinha de sorvete.
Mas,
afinal, que Brasil foi esse que descobri em minhas memórias?
Descobri um Brasil armado e onde as estatísticas de crimes por arma
de fogo eram, curiosamente, percentualmente muito menores.
Pelo
menos o meu Brasil, o Brasil do meu cotidiano desde a infãncia até
o início da idade adulta – que antigamente ficava lá pelos 18
anos e que hoje pode chegar aos 35, 40 anos. (Conheço “adolescentes”
com essa idade... Mas isso é outra história...)
Desde
muito garoto, convivi com armas de fogo pra todo lado. Meu pai é
natural de uma cidade do interior de Minas, cidade onde mora ou
morava boa parte da família – tios, primos, avó, etc, e onde a
presença de armas de fogo era constante. E não creio que isto seja
específico desta cidade, já que outros amigos de escola e mesmo da
rua e do bairro onde eu morava, em Belo Horizonte, partilhavam desse
mesmo convívio com armas de fogo
Quando ia
com meu pai e família para a fazenda, sempre havia mais de um tipo
dessas armas. Nas casas dos moradores, chamados por lá de “colonos”,
pessoas simples, a presença das armas de fogo também era
absolutamente comum – portanto, não era um privilégio dos donos
da fazenda, como alguns, precipitadamente, poderiam pensar. Vários
deles “fabricavam” as próprias armas.
Eram
armas, na maioria, antigas, que haviam sido adaptadas a algumas
“modernidades”, como por exemplo, o uso de cartuchos de munição.
Vi muitas e muitas armas cujas coronhas foram mantidas, e até mesmo
algumas partes dos mecanismos de disparos. Mas que haviam sido
transformadas das antigas “polveiras” - como o pessoal chamava na
“roça”, para armas que disparavam cartuchos, dos mais variados
calibres, mas, na maioria das vezes, eram as famosas “cartucheiras”,
variando entre o calibre 24 - as menores, e o calibre 12 – as
maiores. Com um cano ou dois, elas dominavam o ambiente.
Mas havia
também as “garruchas”, calibre 22, na maioria das vezes,
carregadas pelo cano, como as cartucheiras, com capacidade para 02
disparos em sequência – o mais curioso eram os dois gatilhos, já
que havia um “cão” para cada cano da arma, à moda das armas
mais antigas. E ainda sobrava espaço para os revólveres e pistolas
modernas, até mesmo semi-automáticas, as catucheiras de repetição,
e também os rifles de ferrolho e espingardas do tipo “punheteira”,
como eram popularmente conhecidas, que nada mais são que armas de
repetição recarregadas por algum mecanismo que ejetava e recolocava
a munição na culatra acionada pelas mãos do atirador.
Desde
pequeno, convivia com gente armada, com armas expostas nas paredes
nas casas, com histórias da caçadas e conversas sobre as melhores
armas de fogo que fulano ou beltrano tinham ou desejavam
Meu pai
me contava histórias das caçadas do meu bisavô Adolfo Cisalpino.
Gostava de caçar, tinha armas e também cães perdigueiros treinados
para essa atividade. Ouvia também as histórias dos outros tios
fazendeiros, como o Tio Geraldo, o Tio Vate... Todos tinham armas em
casa, caçavam e/ou andavam por aí armados em algum momento da vida.
Meu pai
também viajava com os amigos, frequentemente, para caçar e pescar.
Me lembro inclusive de uma história em que ele e os amigos, voltando
de uma caçada em Paracatú, foram parados por uma barreira de
militares, na entrada de Belo Horizonte (enquanto caçavam, os
militares tomavam o poder no Brasil, em 1964). Acontece que, nesse
momento tenso de nossa história, ele e os amigos se viam parados
diante de militares fortemente armados, dirigindo um carro cujo
porta-malas estava repleto de rifles e espingardas – não era, com
certeza, a melhor das situações. Foram salvos pela carteirinha de
oficial do exército de um dos amigos, que era médico do hospital
militar de BH . Graças a essa carteirinha, foram liberados sem que o
carro fosse revistado.
(Meu bisavô, Adolfo Cisalpino de Carvalho, e seus cães, caçando.
Foto de 1929)
Por volta
dos meus nove anos de idade, comecei a ter contado mais direto com as
armas de fogo. Meu pai me apresentou uma espingarda 22, “punheteira”
, ou seja – de repetição, que ele tinha ganho de presente de um
delegado da cidade de Curvelo, se não me engano.
Eu achei
aquela arma absolutamente linda, com sua coronha de madeira escura e
lustrosa, e aquele mecanismo fantástico no cano que permitia a
recarga rápida com apenas dois movimentos. Podia dar até 12 tiros
em sequência. Os cartuchos eram colocados em um tubo de metal
“escondido” na coronha da arma e conduzidos por molas até a
culatra. Você puxava para trás o mecanismo e ele expulsava o
cartucho vazio. Com o movimento para a frente, você introduzia um
novo cartucho.
Foi com
essa arma, aos nove anos de idade, que comecei a aprender a atirar, a
manejar armas de fogo e a compreender o que elas eram. Depois aprendi
a carregar e disparar com um revólver de tambor, de seis tiros,
calibre 22 também, e também com meu pai.
Depois
que aprendi a usar a arma, depois que aprendi o que ele – meu pai,
julgava necessário para se ter e manusear armas de fogo, ele me deu
a arma de presente. Essa foi, portanto a minha primeira arma, da qual
tenho grande saudade, pra dizer a verdade: uma espingarda
“punheiteira” calibre 22, de fabricação tcheca. Arma de grande
precisão e valor, já que recebi ofertas de compra por diversas
vezes, de gente que entendia de armas – mas, era MINHA espingarda e
jamais iria negociá-la, claro. Eu deveria ter entre 12 e 13 anos de
idade, quando ganhei essa arma.
Imgino
que um possível leitor desse texto esteja pensando agora que meu pai
era absolutamente louco de entregar uma arma a uma “criança” de
12, 13 anos de idade. Talvez sim, se consideramos o contexto de hoje.
Talvez não, se consideramos o contexto dos anos 70, quando este fato
aconteceu.
O mais
importante, na minha opinião, foi o que aprendi com meu pai nessa
época sobre armas de fogo. Ele me apresentou essas regras como
condições inegociáveis para me entregar a arma. Qualquer uma
delas, desrespeitadas uma única vez, implicaria na retomada do
presente – portanto, ouvi com total atenção e nunca ousei
desrespeitá-las, porque conhecia o meu pai e ele não foi e não é,
até hoje, do tipo de pessoa que fala uma coisa e depois diz: “essa
é sua última chance. Da próxima você vai ver”. Não. Nunca. Em
toda a minha vida. As coisas aconteciam da primeira vez mesmo. Não
seguiu a orientação? Não tem outra chance. E eu não iria
testá-lo, evidentemente. Perdi todas as vezes que tentei e já tinha
aprendido, aos 12 anos, como é que a banda tocava – e devo
ressaltar que nunca me senti “oprimido” ou “traumatizado” por
causa disso. Sentia, e sinto, muito respeito por quem faz exatamente
o que fala. E digo mais: procuro agir assim com todas as pessoas que
convivem comigo, incluindo meus alunos.
E o que
ele me disse? Quais eram as regras inegociáveis? Segue abaixo:
-Nunca,
por motivo nenhum, muito menos por brincadeira, aponte uma arma para
uma alguma coisa ou pra alguma pessoa, esteja ela carregada ou não.
Se,
algum dia, você apontar uma arma para alguém, atire. Mostrar
armas, ameaçar alguém com uma arma, é coisa de gente covarde.
Nunca mostre ou aponte uma arma a não ser que tenha absoluta
certeza que vai usá-la.
Armas
não são brinquedos. Armas são feitas para matar, mesmo que possam
ser usadas como esporte. Disparos de armas de fogo matam, seja qual
for a arma. Toda vez que pegar em uma arma, tenha total consciência
disso.
Se
você atirar em alguém, vai assumir todas as responsabilidades
disso. Eu direi que você sabia exatamente o que estava fazendo,
pode ter certeza disso. Não vou protegê-lo ou dizer que foi
acidente.
Nunca
ande com uma arma, esteja ela carregada ou não, sem acionar a trava
de segurança e só destrave quando for atirar.
Mantenha
a arma descarregada em casa, e guarde a munição em lugar
diferente. Escolha um lugar onde outras pessoas não tenham acesso
fácil e nunca diga para qualquer pessoa, mesmo da família, e
especialmente para crianças, onde você guarda a arma.
Nunca
empreste a sua arma para ninguém, mesmo que ele diga que sabe usar
uma arma: a arma é sua e o que ela faz é sua responsabilidade,
sempre, mesmo que outro esteja usando.
Foi,
basicamente isso, que ele determinou. Lembro e sigo, todas essas
regras, até hoje. E já impus essas mesmas regras a outras pessoas.
Depois
que ganhei a arma, levei para a fazenda. Principalmente porque não
era uma arma registrada e portanto podia ser apreendida pela polícia.
Ela foi para a fazenda escondida sob o banco do carro do meu pai –
a conivência entre pai e filho era aceitável, sob certas
circusntâncias e regras, como se vê...
Além da
minha espingarda, na fazenda havia uma cartucheira de calibre 24, de
uso geral – ou seja, todo mundo podia usá-la. E eu a usei muito,
desde essa época. Para a minha espingarda e para a cartucheira,
conseguia munição em qualquer lugar. Na cidade natal de meu pai,
por exemplo, eu comprava munição numa relojoaria, eu mesmo (não,
não era um adulto, era eu mesmo). A munição calibre 22 e cartuchos
não tinham regulamentação especial, nessa época. Aprendi com o
pessoal da loja a comprar cartuchos.
Eram
vários tipos de chumbo: chumbos pequenos, que se espalhavam muito,
chumbos maiores, que atingiam o alvo de uma forma mais concentrada, e
chumbos únicos, que faziam um estrago danado no alvo. Algumas
pessoas tinham recarregadores manuais de cartucho e faziam a própria
munição. Não era difícil encontrar munição “personalizada”
também. Muitos carregavam o cartucho com sal grosso – eram os
famosos e dolorosos “tiros de sal”, usados para espantar moleques
atrevidos, que roubavam frutas nos pomares, ou pescavam em pesqueiros
reservados em terra alheia, por exemplo: sapecavam a pele que era uma
beleza, mas, não matavam. Já fui alvo de disparos desse tipo, mas,
felizmente, eram de curtíssimo alcance e a gente nessa época corria
bem...
Nessa
mesma época, as famosas “espingardas de chumbinho” - armas que
disparavam pequenos projéteis feitos de um chumbo muito maleável,
disparados por ar comprimido, também eram muito comuns e até
populares. Muitos dos meus amigos as tinham.
Me
lembro, por exemplo, do Chico, do Antônio – esse também tinha um
rifle Winchester calibre 44 (lindíssimo!), do Orlandinho e do
Maurício: todos tinham espingarda de chumbinho. Andávamos pela rua
afora, em Belo Horizonte, no bairro da Serra, com essas armas.
Tranquilamente, sem problemas e sem espantar ninguém. Um alvo
preferencial, eram os pardais e rolinhas – caçadas totalmente
cretinas e sem sentido, cujo objetivo era somente ver quem acertava o
coitado do bichinho. Mas também faziamos “guerras”: alguns em um
esconderijo e outros em outro. Tinhamos que atirar nos alvos
colocados na “trincheira inimiga” - coisa potencialmente
irresponsável e perigosa, mas, havia o concenso quase geral, que
essas armas “não matavam”. Até o dia em que um garoto do bairro
perdeu um dos olhos por causa de um disparo de chumbinho. Daí, a
“farra” acabou e o acesso às espingardas ficou restrito.
Fora
isso, a única repreensão que me lembro de ter ouvido, na rua, em
Belo Horizonte, armado com uma espingarda de chumbinho, foi de um
senhor que ficou espantado por eu carregar os cuzi-lo no cano da arma). Ele me disse: “Ei, garoto, você tá doido? Chumbo faz mal pra saúde”. E foi só isso.
Alguns anos depois, a legislação ficou mais severa e eu, mhumbinhos na boca (era
mais fácil do que pegá-los na caixinha e o cuspe facilitava
introdenor de idade,
só conseguia os chumbinhos e os cartuchos para as “cartucheiras”.
Alguns
anos depois, nem isso: até os cartuchos passaram a ser vendidos
somente para maiores de idade com registro de armas. Claro que essas
mudanças na legislação acompanhavam a escala da violência urbana,
principalmente.
Aos 18
anos, comprei eu mesmo uma arma. Fiquei em dúvida entre uma pistola
automática 765, da Taurus, e uma carabina URCO calibre 38,
semi-automática, com carregador para cinco tiros. Acabei comprando a
segunda. Comprei na Mesbla, na rua Curitiba, esquina com Afonso Pena,
em Belo Horizonte. Tive que preencher registro na polícia civil e
tudo mais.
A minha
amada espingarda 22 havia desaparecido, em circunstâncias muito
pouco esclarecidas e que envolvem pessoas da família, portanto, não
vou comentar.
Esse
rifle, ficava comigo em casa, em BH, tranquilamente, já que era
registrado, mas eu não tinha porte, portanto, ele ficava mais em
casa mesmo, e eu não me arriscava a carregá-lo por aí –
estavamos nos anos 80 e a situação com relação a armas de fogo
havia mudado substancialmente. (Existe uma diferença, pra quem não
sabe, entre poder comprar uma arma e poder andar com ela por aí –
o chamado porte de arma tem regras mais severas ainda. Hoje, é
restrito a pouquíssimas categorias profissionais). Depois, vendi
essa carabina para um advogado que queria voltar pra sua terra, no
Nordeste, onde tinha recebido ameaças de morte. Nunca mais soube de
nenhum dos dois: nem da carabina, nem do advogado. Espero que ambos
estejam bem e que nunca tenham matado ninguém.
Nessa
época, já não gostava mais de caçar o que quer que seja. Mas
ainda gostava de armas e de atirar. Cheguei a frequentar um clube de
tiro, com um amigo que tinha grana suficiente para bancar esses
luxos. Fora isso, dava uns tirinhos de vez em quando na fazenda, em
objetos inanimados.
Meu irmão
administrava a fazenda, e tinha um Taurus 38, também sem registro,
para o qual conseguia munição de vez em quando com amigos –
lembrem-se: estamos no Brasil.
Essa é a
minha experiência com armas de fogo, de um modo geral. Andei
conversando por aí, e descobri que essa experiência, que eu
considerava comum, não é tão comum assim. Com o passar dos anos,
ela fica cada vez menos comum e quase clandestina, digamos assim.
Em 2002
ou 2003 - não me lembro, foi promulgado o Estatuto do Desarmamento,
depois de uma longa discussão que veio desde 1997. Houve, inclusive,
um plebiscito sobre a proibição ou da venda de armas no país. Eu,
votei não à proibição – sou um dos que acreditam que possuir
armas é um direito do cidadão e acredito que não é
necessariamente o porte de armas que é responsável pela violência.
Mas, gostaria de ressaltar que o objetivo desse texto não é
defender essa posição, e sim discutir os fatores mais determinantes
da violência armada no Brasil, incluindo o comércio e porte de
armas.
Desde
então, comprar armas ficou muito difícil e portar armas, mais
difícil ainda – legalmente falando. O governo promoveu uma
campanha de desarmamento, sob o argumento de que milhões de armas
que eram mantidas em casa, alimentavam a violência, seja através do
roubo por parte de marginais, seja por acidentes ou por assassinatos
cometidos por pessoas tomadas por uma ira momentânea e que, por
terem armas em casa, acabavam disparando contra alguém. Para
estimular que as pessoas entregassem essas armas, o governo autorizou
que as que não eram registradas o fossem e que as pessoas que
quisessem se desfazer delas, poderiam levá-las, sob salvo-conduto
previamente conseguido com a polícia, até uma delegacia onde seriam
remunaradas em até R$ 300,00.
Dados do
governo afirmam que, de 2003 até hoje, foram entregues mais de 600
mil armas, dessa forma. Mas, estima-se em alguns milhões as armas em
posse de civis, ainda hoje, no Brasil. E os especialistas continuam
atribuindo a essas armas, o imenso número de mortes por armas de
fogo no Brasil. É aí que a coisa pega...
A
primeira coisa que chama a atenção é o número de assassinatos por
arma de fogo no Brasil: foram, em 2011 ´último ano com dados
consolidados, arredondando, TRINTA E NOVE MIL pessoas. O que nos
coloca em primeiro lugar, NO MUNDO, em números absolutos. Para
comparação, nos EUA, onde a compra e porte são permitidos a
qualquer pessoa na maioria dos estados, esse número, no mesmo ano,
foi de NOVE MIL pessoas. Ou seja: matamos quatro vezes mais, por arma
de fogo, com todas as restrições, do que nos EUA, onde, segundo
algumas pessoas que conheço, há uma “cultura das armas de fogo”.
Se
consideramos as diferenças populacionais entre o Brasil e os Estados
Unidos, nossa “vitória” em assassinatos é bem mais
expressiva...
E,
curiosamente, fazemos críticas aos norte-americanos por esse “amor
às armas”... Será ignorância ou será ignorância, de nossa
parte, sobre o que acontece no país?
Entre
2003 e 2005, os que defendiam a tese do desarmamento comemoraram:
houve uma redução de 8% no número de assassinatos por armas de
fogo no Brasil – atribuíram essa diminuição ao estatuto do
desarmamento e à campanha a ele atrelada. Entretanto, de lá pra cá,
o número de assassinatos por armas de fogo voltou a crescer.
Outro
dado importante, é o que afirma que a esmagadora maioria das armas
usadas nesses assassinatos, é de fabricação nacional, o que
descartaria o contrabando de armas – coisa também absolutamente
comum no país, como um componente que alimenta essa violência,
desmoralizando o estatuto do desarmamento.
Um dado
estatístico que ajudaria a explicar isso, é o que informa que das
60 mil armas registradas no Brasil por empresas de segurança, em
torno de 24 mil – ou um terço delas, é roubada em apenas um ano.
Mas, há
questões mais graves: recentemente, um policial militar da ROTA, em
São Paulo, apreendeu um revólver calibre 38, com numeração ainda
em ordem. Levou a arma para a delegacia e descobriu que essa mesma
arma, com essa mesma numeração, já havia sido apreendida outras
CINCO VEZES pela polícia paulista. Vamos fazer uma pergunta óbvia:
como é que uma arma apreendida pela polícia volta para as ruas?
Precisa responder, amigo leitor?
Outra
questão a considerar: os especialistas, seja no Brasil, seja nas
Nações Unidas, afirmam, peremptoriamente que existe uma relação
inegável entre a desigualdade social e a violência urbana e as
mortes por arma de fogo.
No
Brasil, segundo o governo, a renda subiu, a pobreza diminuiu e está
a ponto de ser eliminada definitivamente – novamente, segundo o
governo (não vou rir, porque isso aqui é um texto sério, ao
contrário dos governos brasileiros). Mas a violência urbana
continua subindo... Como explicar isso então?
Senão,
vejamos: apesar do desarmamento, as mortes por armas de fogo, que diminuíram por um pequeno período, voltou a subir. Apesar do aumento
da renda e da eliminação da pobreza – segundo o governo - a
violência continua subindo. Isso, na minha opinião, significa que,
se esses argumentos são válidos, como dizem os especialistas, no
caso do Brasil eles não são suficientes para reduzir
definitivamente o número de mortes por armas de fogo.
Então, e
afinal de contas, onde está o problema? Eu, claro, tenho minhas
opiniões, que por acaso coincidem com as opiniões de muitas outras
pessoas neste país.
Pra mim,
e pra muita gente o problema tem nome: IMPUNIDADE.
Neste
país, é fácil ma preciso lembrar que, menores de idade podem matar. Serão “apreendidos” por algum tempo e depois sairão, na maioridade, com fichas policiais absolutamente limpinhas, limpinhas – a justificativa é não “condenar” essa pessoas por toda a vida, possibilitando a “recuperação” e reintegração dessas pessoas à sociedade – lindo, mas distante da realidade.
A segunda coisa que é preciso lembrar é que, portar armas de fogo é ilegal e é fácil não ser pego ou ser “perdoado”
por isso.
Antes de
mais nada, é punível com até quatro anos de prisão. Como é pena “pequena”
o cidadão não fica preso, pode responder ao processo em liberdade.
Se for reincidente, também não fica em cana, deve pegar um regime
aberto, ou semi-aberto, pelo mesmo motivo : penas de até quatro anos
são “beneficiadas” com regimes prisionais especiais. As
alegações são duas: população carcerária no Brasil é muito
grande e as prisões são “universidades do crime” - levar o
cidadão pra lá pode piorar a situação, transformando o cidadão
em criminoso, definitivamente. Então, deixam os caras pela rua
afora, com os outros cidadãos que entregaram suas armas estão
desarmados na rua e em casa.
A
terceira coisa que é preciso lembrar: a pena máxima no Brasil é de
30 anos. Mesmo que penas se acumulem, não podem passar de trinta
anos. E esse período pode ser transformado em prisão por apenas um
sexto desse período, ganhando o cidadão “progressão de pena”
para semi-aberto, por exemplo, por “bom comportamento” - a
estratégia de se declarar “arrependido” e abraçar uma religião,
até como pastor ou pastora, tem se mostrado infalível, como
demonstra o recente benefício concedido à “Pastora” Suzana Von
Richstoffen – a doce garotinha arrependida que mandou matar os
próprios pais... Na cabeça das pessoas deste país, quem é
religioso não mata, ou mata menos. Talvez se esqueçam que mais de
90% das pessoas, quando são presas, declaram ter religião... Talvez
nunca tenham estudado as guerras religiosas pelo mundo afora... Ou
talvez tenham se esquecido de certas práticas culturais por aqui:
Lampião, só como exemplo, pedia proteção divina antes de cometer
seus crimes – e recebia. Não sei o que é mais contraditório...
A quarta
coisa a ser lembrada, e que impressiona definitivamente: dos
homicídios cometidos, hoje, no Brasil, SOMENTE 8% SÃO RESOLVIDOS.
Tradução: 92% dos homicídios cometidos, hoje, no Brasil, vão
ficar absolutamente impunes. Ninguém saberá nem mesmo quem cometeu
o crime.
Imagino
que isso seja um estímulo maravilhoso para se matar alguém: a
chance de descobrirem que foi você, no Brasil, é estatisticamentemuito pequena(quem sabe o ENEM não gostaria de colocar uma questão
desse tipo em sua prova de matemática, não é?) Somado à brandura
das penas, a sensação é, ao meu ver, de “liberou geral”, o que
explicaria muita coisa.
Se você
quer um termo de comparação: no Japão, 95,9% dos homicídios são
esclarecidos. Na Alemanha, 94 %; no Reino Unido, 78% e nos EUA,
68,3%.
Em
resumo, na minha opinião, a violência provocada por armas de fogo,
no Brasil, não vai cair, nem pelo Estatuto do Desarmamento, nem pela diminuição da desigualdade social (que cai pouquíssimo, por mais
que o governo queira dizer o contrário). Ela só vai cair quando a
pessoa que estiver atrás do gatilho, tiver a absoluta certeza, antes
de puxar o gatilho, que aquele gesto terá consequências sim,
pesadas e imediatas, para sua vida.
Caso
contrário, essa sensação que temos hoje, de que podemos sair de
casa e morrermos baleados, espancados, queimados, por motivos
banais, ou por motivo nenhum, vai se tornar cada vez mais comum, até
ao ponto em que teremos que reconhecer que no Brasil se morre muito
mais do que em áreas de guerra e que nós, a população civil
desarmada, nossos filhos, nossas famílias, nossos sonhos e projetos, estão completamente à mercê de qualquer pessoa que queira roubar
alguns trocados ou um tênis. E ainda vão dizer que o assassino é
que é a vítima de uma sociedade injusta.
Pergunto
então: onde está a justiça na morte de um garoto que portava um
celular? É por acaso algo proibitivo para a maioria da população?
Os números dizem o contrário: há mais celulares que gente, no
Brasil. Onde está o crime de uma policial, que nem usava armas por
ser lotada em setor administrativo, esposa e mãe, fuzilada na frente
da família? Onde está o crime de uma dentista que sustentava toda
uma família que agora mal sabe como vai sobreviver? Qual o crime
dessas pessoas? Que mau elas fizeram? Trabalhar? Estudar? Ou talvez
tenham cometido o maior dos crimes neste país: acreditar que é
função do estado proteger seus bens, sua vida, seus direitos
básicos?
Valores
burgueses esses meus, prezado leitor? Quais são os seus valores
não-burgueses? Onde eles podem ser medidos? Na Venezuela, país com
um dos maiores índices de violência do mundo? Em Cuba, onde a
população vive à mercê de um estado policial e fascista? Na
Coréia do Norte, país onde o governo troca paralisação de
programas nucleares por cestas básicas? Não me venha com utopias.
Vivo uma vida com os pés no chão, onde discurso não paga minhas
contas.
Não
ouvi, uma única e solitária voz, dos que se auto-intitulam “defensores dos direitos humanos”, no Brasil, protestar contra o
livre e impune extermínio de cidadãos pacíficos, desarmados,
trabalhadores... Porquê? Porque eram brancos? Porque eram policiais?
Porque não viviam em “comunidades”? Esse então o crime delas? A
vida dos que classificam como “privilegiados” (que privilégios tinham a pobre mãe de família assassinada? Que privilégios tinha a
modesta dentista assassinada? Trinta reais na conta?) é banal para
o estado brasileiro? O que querem essas pessoas? Inverter o processo
que acusam? Dizem que jovens negros, mulatos e pobres são vítimas
do “sistema” (esse ser inexistente...) e são os que mais morrem:
é verdade. As estatísticas provam isso... Vamos protegê-los em
detrimento dos outros? A ideia é inverter o genocídio? Onde há
justiça nisso? Vamos resolver os problemas de toda a sociedade ou
vamos selecionar quem merece viver ou morrer, usando critérios
ideológicos nada justos ou confiáveis?
Não faço
ideia do que pensam os “poguesistas”... Não faço ideia nem se
pensam de fato, ou se estão em busca de uma auto-afirmação e
realização pessoais criminosas, na minha opinião... Nenhum dos
argumentos deles me convence. Nenhuma das ações tentadas até agora
resolve ou ao menos esboça justiça e segurança para TODOS –
brancos, negros, amarelos, ricos, pobres ou até a Xuxa.
Pra mim,
só existem pessoas, que, na absoluta e esmagadora maioria, luta,
diariamente, por seus sonhos e pela vida que desejam pra si. E ainda
vejo a hipocrisia brasileira criticar os EUA e um cretino
ex-candidato a prefeito no Rio de Janeiro dizer que “a culpa
individual pela violência é coisa da burguesia para penalizar os
pobres e os negros. A culpa é coletiva”... Eu, ao contrário,
aprendi que ser homem é assumir suas culpas. Se as desigualdades
sociais fossem as únicas responsáveis, já estaríamos todos
mortos. Pelo Brasil e pelo mundo afora existem milhões de pessoas
injustiçadas, exploradas, humilhadas, mas que nem por isso se acham
no direito de tirar a vida dos outros: persistem em sua luta diária
e não instrumentalizam seus problemas – e essas constituem a
esmagadora maioria.
Muitos
países em guerra, são mais seguros que o Brasil. Mortos povoam os
noticiários. Mortos de todas os tipos, classes sociais e cor.
Enfim, quem viver, literalmente, verá. Boa sorte a todos.