segunda-feira, 18 de junho de 2012

50 ANOS ATRÁS: CRISE DOS MÍSSEIS DE CUBA

PUBLICADO EM: VEJA NA HISTÓRIA



Os alertas soturnos ecoavam desde agosto de 1945, quando o homem, num perverso toque de mágica, fez evaporar uma cidade inteira com o apertar de um botão. Quando Hiroxima desapareceu do mapa, nasceu um novo mundo, cuja própria existência – antes a única convicção que aproximava todos os seus habitantes – já não era mais certa. Pela primeira vez desde que seus pés começaram a caminhar pela Terra, a humanidade segurava nas mãos a decisão entre viver e morrer. E a volúpia febril despertada por esse poder fazia calar qualquer instinto de preservação. Dezessete anos se passaram, e a penosa corrida chegou ao seu ponto mais dramático. A capacidade humana de destruir o planeta passou de um incômodo pesadelo a uma ameaça assustadoramente verdadeira e palpável. Nas últimas semanas, as duas maiores potências da Terra estiveram a ponto de mergulhar no precipício sem fim, puxando com elas todos os povos que presenciam seu atemorizante duelo. O indizível desfecho de um possível enfrentamento armado entre os Estados Unidos e a União Soviética foi miraculosamente impedido, graças aos resquícios de humanidade que ainda sobrevivem em seus líderes superpoderosos – e, vale lembrar, graças também a uma certa dose de sorte. No apagar das luzes, John Kennedy e Nikita Kruschev, os homens que controlam os destinos do mundo, sentiram as repercussões de sua perigosa dança, seguiram suas emoções mais terrenas e deram um passo atrás. A partir de agora, todos se perguntam: a marcha para a perdição continuará? Os arquiinimigos ouvirão as sirenes de emergência ou continuarão bailando ao som grave de seus monstruosos arsenais? Talvez o mundo seja outro a partir deste outubro de 1962. Quais dissabores ele nos reserva, só os próximos anos serão capazes de revelar.

Assim como o nascimento da ameaça do holocausto nuclear, a gênese da última crise também ocorreu quando se fecharam as cortinas da II Guerra Mundial. A divisão do espólio do conflito entre os vencedores rachou o globo e plantou a semente para o desafio enfrentado nas semanas que se passaram. Mas a Guerra Fria entre o mundo capitalista, unido sob os auspícios dos americanos, e o bloco comunista, chefiado a ferro e a fogo pelos soviéticos, nunca tinha estado tão perto de se transformar num inferno. É aí que entra a figura de um incontrolável aspirante a tirano entronado numa irriquieta ilha caribenha. Disposto a pagar qualquer preço para sustentar seus sonhos de poder, Fidel Alejandro Castro Ruz, o comandante da barulhenta revolução de Cuba, quis brincar de Nero no meio dos gigantes. Nem em seus mais bizarros delírios ele imaginava o tamanho do estrago que seria capaz de fazer. Aliado ao maroto Kruschev, o dirigente russo sempre atento à chance de um xeque-mate no tabuleiro ideológico, Castro decidiu levar a Guerra Fria à soleira da porta dos americanos. Não se sabe de quem partiu a idéia – sem imprensa livre e com fúria impiedosa na punição aos inconfidentes, URSS e Cuba não deixam que seus segredos cheguem aos ouvidos do mundo. De qualquer forma, a instalação de mísseis nucleares numa ilha quase grudada à Flórida foi, sem dúvida, a mais ousada jogada que alguém seria capaz de imaginar. Contribuiu para a quase calamidade o inexplicável atraso dos americanos na descoberta da manobra. Além de oito anos de prosperidade e calmaria, o governo do ex-presidente Dwight Eisenhower deixou como legado a criação de uma azeitada máquina de monitoramento e espionagem dos adversários comunistas. No caso dos mísseis soviéticos em Cuba, as engrenagens ficaram travadas durante meses.




Se a vigilância dos EUA ao espectro vermelho costuma chegar aos limites da paranóia, desta vez Washington agiu com um descuido espantoso. Em julho último, a inteligência americana notou um súbito aumento no número de navios soviéticos a caminho de Cuba – hoje, acredita-se que tenha sido esse o período de início da montagem dos mísseis. O secretário de Defesa, Robert McNamara, ordenou que a movimentação fosse seguida de perto. Apesar dos indícios suspeitíssimos, Kennedy e seus auxiliares caíram no conto de Kruschev, que jurava de pés juntos que a URSS não colocaria armas em Cuba. No mês passado, Kennedy visitou o Congresso e assegurou que não havia mísseis de ataque na ilha. No mesmo dia, o secretário de Justiça, Robert Kennedy, ouvia essa mesma garantia do embaixador soviético, Anatoly Dobrynin. Kruschev procurou Kennedy pessoalmente naquela semana e repetiu: não interessava aos soviéticos espalhar seu poderio bélico mundo afora. Mas a montagem do arsenal era tão evidente que a própria população de Cuba passou a desconfiar. Por meio da comunicação entre moradores da ilha e seus parentes exilados em Miami, os EUA receberam mais de mil denúncias sobre os trabalhos dos russos. O governo, contudo, optou por desprezar as informações. Solitário em sua crença de que a carga dos navios soviéticos era bélica, o diretor da CIA, John McCone, era incapaz de convencer o presidente. Ainda passou o vexame de ser alertado sobre a instalação dos mísseis pela inteligência francesa – ele passava lua-de-mel em Paris. A negligente inocência de Kennedy chegou a tal ponto que os americanos não compreenderam um recado colocado bem debaixo de seu nariz, dentro de seu próprio território. Uma semana antes que a crise emergisse, o presidente de Cuba, Osvaldo Dorticós – pouco mais que um mensageiro do regime, pois quem manda mesmo é Fidel – discursou na Assembléia Geral da ONU, em Nova York. Seu pronunciamento foi de clareza cristalina: "Se Cuba for atacada, saberá se defender. Repito: temos meios para nossa defesa. Também temos nossas armas inevitáveis, as armas que preferíamos não ter adquirido, as armas que desejamos jamais utilizar".


(Kennedy e Kruchev)



Como se ainda faltasse alguma coisa para convencer os americanos da tempestade que se formava, as provas concretas foram, enfim, obtidas – e apenas cinco dias depois. Na manhã do último dia 14, um avião U-2 equipado com uma câmara fotográfica de último tipo avistou o que parecia ser uma nova construção militar em San Cristóbal, na província de Pinar del Rio, no oeste de Cuba. As fotografias registradas pelo aparelho foram examinadas com minúcia. Agora era certo: os soviéticos instalavam mísseis em Cuba, e as características das cargas flagradas pelos americanos sinalizavam que esses mísseis eram capazes de carregar ogivas atômicas. As implicações eram gravíssimas. Os soviéticos fincavam as primeiras bases para que, dentro de pouco tempo, fossem capazes de disparar uma bomba nuclear em qualquer metrópole americana, inclusive Nova York e Washington. Ciente do peso da responsabilidade que repousaria sobre os ombros do presidente nos dias que estavam pela frente, o assessor especial para Assuntos de Segurança Nacional, McGeorge Bundy, o primeiro a receber o explosivo relatório, decidiu poupar o chefe de uma noite insone – contaria as novidades só na manhã seguinte, no dia 16. Esgotado por um fim de semana de campanha eleitoral (no mês que vem, os americanos vão às urnas para eleger parlamentares e governadores), Kennedy ganhou mais algumas horas de descanso com Jackie antes de enfrentar os dias mais difíceis de sua vida. Ao despertar para o desafio, o mais jovem presidente eleito da história americana (aos 43 anos, em 1960) enfim mostrou possuir a estatura intelectual e moral necessária para liderar a principal democracia do mundo. No decorrer da crise, Kennedy se trancou com um grupo seleto de auxilares (comandados pelo irmão, Robert), apostou numa estratégia moderada e consistente, evitou alarmar a população e, principalmente, não deu ouvidos às pressões dos "falcões" de Washington – sedentos por sangue, os parlamentares republicanos, de oposição, não aceitavam nada aquém de uma ofensiva militar imediata contra Cuba. Os americanos descobririam nas etapas seguintes da duríssima negociação (leia reportagem a seguir) que tal providência arriscaria levar o mundo à ruína.

Mais calejado depois de algumas trapalhadas nesses dois primeiros anos de governo, Kennedy logo elegeu uma linha mestra para a condução de seu país na crise. Sabendo que ganharia o apoio de todos os países não-alinhados a Moscou, o presidente decidiu não fazer nenhum movimento brusco, oferecendo tempo e espaço para que Kruschev sentisse a pressão e recuasse. Foi, de fato, o que acabou ocorrendo, resultado do bloqueio naval no Atlântico. Kennedy não pode, porém, sair da crise como o mocinho pacato que afugentou na lábia o bandido que apontava a arma para sua testa. É imperativo lembrar que o inimigo apareceu na janela ao ser atraído pelo próprio presidente. Foi com seu papel na fracassada invasão à Baía dos Porcos, em abril de 1961, que Kennedy ofereceu de bandeja a melhor desculpa possível para Castro e Kruschev – a de que era preciso armar a ilha para evitar outra tentativa de invasão a Cuba. O americano também precisa responder pelo erro grosseiro de avaliação diante das manobras de Kruschev. Ele acreditava que seu oponente não ousaria chegar tão perto de suas fronteiras.

Por que, afinal, o arisco camarada fez uma aposta tão arrojada? Das paredes do Kremlin, como se sabe, não costumam escapar informações desse tipo. Observadores estrangeiros acreditam, entretanto, que o jactante russo queria aproveitar o momento frágil vivido pelo governo Kennedy e equilibrar a balança de poder da Guerra Fria, que pende para os americanos. Kruschev também amargava problemas no quintal de casa, com constantes desafios à sua autoridade como líder do mundo socialista, e sabia que estava perdendo terreno na corrida das armas – os americanos têm vantagem tecnológica e numérica na comparação de arsenais balísticos. Com o que restou da confiança colhida nas escassas vitórias vermelhas (o Sputnik, a Baía dos Porcos, a viagem de Yuri Gagárin) e farto do que via como uma postura arrogante de Kennedy (nas negociações sobre o futuro de Berlim e na oferta de um tratado sobre testes de mísseis), Kruschev arriscou. Conforme um dos raros relatos já divulgados de seus interlocutores em Moscou, dizia querer "jogar um porco-espinho nas calças do Tio Sam".

A intrepidez do comandante vermelho durou onze dias repletos de temores, reuniões secretas, mobilizações militares e lances de desespero. Ironia suprema, Nikita Kruschev, o soberano de um império que se vangloria de sua frieza e destemor diante do sentimentalismo dos ocidentais, foi o primeiro a sucumbir. Na noite do dia 26, a Casa Branca recebia uma mensagem incomum. No lugar dos comunicados impessoais e sisudos geralmente assinados por Kruschev, chegava uma carta extensa e franca, claramente escrita sob extrema comoção. Concluiu-se que os nervos de aço de Kruschev haviam fraquejado – ele tomara para si a decisão de oferecer um acordo aos americanos, e redigira a carta de próprio punho, sem consultar a cúpula comunista. Sua proposta: Kennedy prometeria jamais atacar Cuba, todos os mísseis iriam embora. "Entendemos perfeitamente que, se atacarmos vocês, vocês responderão da mesma forma", escreveu Kruschev. "Somos pessoas normais, que compreendemos e avaliamos corretamente a situação. Só lunáticos e suicidas poderiam agir de outra forma. Não queremos destruir seu país, mas sim, apesar das nossas diferenças ideológicas, competir pacificamente, e não por meios militares. Somente um louco é capaz de acreditar que as armas são os principais meios de vida de uma sociedade. Se as pessoas não mostrarem sabedoria, elas entrarão em confronto, e a exterminação recíproca começará."

Os americanos foram dormir otimistas com a chance de acordo, mas ainda teriam mais um dia de angústia pela frente. Provavelmente convencido pelos camaradas de partido, Kruschev divulgou outra mensagem, desta vez de forma pública, colocando outra exigência na conta dos americanos: a remoção de seus mísseis na Turquia, vizinha da URSS. Moscou comparava a presença das armas dos EUA no país à ameaça dos mísseis soviéticos em Cuba. Kennedy lustrou a cara-de-pau e decidiu ignorar o segundo recado: preparou uma resposta apenas para a carta original de Kruschev. Inacreditavelmente, os momentos de espera por uma definição do russo foram, na verdade, os mais perigosos dos treze dias de crise. Se houve um dia em que a pior das guerras esteve mesmo perto de começar, esse dia foi sábado, 27 de outubro de 1962. Pela manhã, a crise provocou sua primeira e única baixa: o major Rudolph Anderson, que pilotava um U-2 de reconhecimento americano derrubado por baterias antiaéreas soviéticas. Dias antes, Kennedy prometera dar sinal verde para um ataque caso os inimigos dessem o primeiro tiro. Mais consciente dos possíveis desdobramentos dessa ordem, decidiu aguardar. Ao mesmo tempo, os preparativos militares chegavam ao grau máximo. Os dois lados estavam prontos para a batalha. O Pentágono já havia definido até a seqüência de alvos que deveriam ser eliminados na ilha. A CIA informava que todos os mísseis instalados pelos soviéticos em Cuba também estavam prontos para o disparo.

No fim da noite, Washington enviou uma mensagem ao comando da Otan, a aliança militar ocidental. "A situação está ficando urgente", avisava o texto. "Dentro de um prazo muito curto, nosso país pode considerar necessário adotar uma ação militar em nome de seus próprios interesses e dos interesses das nações aliadas no Hemisfério Ocidental." Dias depois, Robert Kennedy confessaria que a saída negociada era, a essa altura, apenas uma fina esperança, e não mais a expectativa geral. "A expectativa era de um confronto militar já no dia seguinte", revelou. Nunca saberemos exatamente o que aconteceu naquela noite em Moscou. Na manhã seguinte, no entanto, Nikita Kruschev enfim sepultou o episódio, garantindo que a humanidade não tivesse presenciado seu derradeiro amanhecer. Em pronunciamento transmitido pela Rádio Moscou, o russo anunciava que as armas seriam encaixotadas e devolvidas à URSS. Até o fechamento desta edição de VEJA, o trabalho de desnuclearização da ilha seguia dentro dos conformes, sem sobressaltos, sob supervisão da ONU (e com ajuda brasileira). Tirante alguma nova reviravolta, a população cubana chegará a 1963 sem mísseis soviéticos no chão nem mísseis americanos sobre sua cabeça. Foi ela, então, a grande vencedora? Muito longe disso. É aí que entra a figura de um incontrolável aspirante a tirano entronado numa irriquieta ilha caribenha. Protegido pelo irmão mais velho de Moscou (que manterá a ajuda financeira e militar) e livre da ameaça do vizinho poderoso de Washington (que tem de manter a palavra e desistir da invasão), Fidel Alejandro Castro Ruz agora tem Cuba nas mãos para fazer o que bem entender

sábado, 16 de junho de 2012

BICAMPEÕES DO MUNDO

BICAMPEÕES DO MUNDO

Nelson Rodrigues

Amigos, estamos atolados na mais brutal euforia. Ontem, quando rompia a primeira estrela da tarde, o Brasil era proclamado bicampeão do mundo* . Foi um título que o escrete arrancou de suas rútilas entranhas. E, a partir da vitória, sumiram os imbecis, e repito: — não há mais idiotas nesta terra. Súbito o brasileiro, do pé- rapado ao grã-fino, do presidente ao contínuo, o brasileiro, dizia eu,
assume uma dimensão inesperada e gigantesca. O bêbado tombado na sarjeta, com a cara enfiada no ralo, também é rei. Somos 75 milhões de reis.
De sábado para domingo houve a feérica vigília do triunfo. Ninguém tinha dúvidas. Aí é que está, ninguém tinha dúvidas. E sofríamos porque há também a angústia da certeza. Mas eu falava da
grande véspera. Lotes de macumbas nas esquinas, botecos iluminados como velórios. Vinte e quatro horas antes da batalha, já tropeçavam na rua os bêbados da vitória. Amigos, nunca foi tão fácil
ser profeta.
Outrora o brasileiro era um inibido até para chupar Chica-bon. Agora não. Cada um de nós foi investido de uma vidência deslumbrante. Nós sentíamos o bi, nós o apalpávamos, nós o
farejávamos. E, a partir de ontem, vejam como a simples crioulinha favelada tem todo o élan, todo o ímpeto, toda a luz de uma Joana d’Arc. De repente, todas as esquinas, todos os botecos, todas as ruas
estão consteladas de Joanas d’Arc. E os homens parecem formidáveis como se cada um fosse um são Jorge a pé, um são Jorge infante, maravilhosamente infante.
Mas falemos do escrete. Esse time de negros ornamentais, folclóricos, divinos deslumbrou o mundo. Foi o mais belo futebol que jamais olhos humanos contemplaram. Perdemos um Pelé. Mas o Brasil vive um momento de tão selvagem euforia que imediatamente descobrimos um novo Pelé. E repito: - um feliz o povo que, na vaga de um gênio, põe outro gênio. Amarildo, o "Possesso", surgiu contra a Espanha. É o novo Pelé proclamado.



Amigos, O Brasil fez no Chile um sofrido futebol, um futebol quase feio, um duro futebol de cara amarrada. Jogávamos para vencer. Amarildo, o dostoievskiano, enfiava-se pela área como um rútilo epilético. Ao marcar os dois gols contra a Espanha pendia dos seus lábios uma baba elástica e bovina. E Garrincha? Foi o gênio duplo do escrete. E, com efeito, foi genial por ele e por Pelé. Vocês se lembram dos seus gols contra o Chile. O mané estava na meia esquerda. No primeiro gol, ele se tornou leve, elástico e acrobático. Deu uma cabeçada que enterrou o Chile.
O gênio soprava, o gênio ventava por todo o escrete. E ontem foi uma jornada deslumbrante. Os tchecos abriram o escore. 1 x 0. Setenta e cinco milhões de brasileiros perguntavam um ao outro: - "Vamos repetir 50?". Mas a derrota de 50 liquidou o Brasil da derrota. O que eu quero dizer é que, em seguida ao gol da Tcheco-eslováquia, Amarildo apanhou a bola. Nos dois últimos jogos ele fora bem pouco Amarildo e bem pouco possesso. Desta vez, porém, partiu para a Copa. Antes que o adversário pudesse esboçar o ferrolho, Amarildo dribla um, dribla dois. O goleiro adversário sai para cortar o centro. Era chegado o momento. E então o "Possesso" enfia a sua bomba entre o goleiro e a trave. A bola, também possessa, foi se cravar no fundo das redes. Parecia apenas o empate, mas era já o bi. O trágico é que começara de véspera o carnaval da vitória. Nunca um povo teve uma certeza tão violenta e tão possessa. O escrete tinha de vencer porque era somente o escrete, era também o homem brasileiro.
No segundo gol, ainda Amarildo, ainda o possesso. Nunca o "Possesso" foi tão dostoievskiano como no segundo gol. Novamente adernou para a esquerda. Nenhuma força humana ou divina poderia quebrar-lhe o ímpeto sagrado. Driblou não sei quantos. Lá estava Zito. E o "Possesso" deu-lhe o gol. Brasil 2X1. Batida a Tcheco-Eslováquia. O terceiro gol veio de uma bola alta de Djalma Santos. Vavá, furioso como um cossaco do Don, meteu a cabeça. A Tcheco-Eslováquia estrebuchou e pôs fogo pelas narinas, como o dragão de São Jorge.
Setenta milhões de brasileiros profetizaram o triunfo. Amigos, depois da vitória não me falem na Rússia, não me falem nos Estados Unidos. Eis a verdade: - a Rússia e os Estados Unidos começaram a ser o passado. Foi a vitória do homem brasileiro, ele sim, o maior homem do mundo. Hoje o Brasil tem a potencialidade criadora de uma nação de napoleões.

*Brasil 3 x 1 Tcheco-Eslováquia, 17/6/1962, Estádio Nacional de Santiago, Chile.
Jogo final da Copa.

Texto publicado em O Globo, em 18/6/1962

segunda-feira, 4 de junho de 2012

POLÍTICA E MEIOS DE COMUNICAÇÃO

POLÍTICA E MEIOS DE COMUNICAÇÃO

Fernando Henrique Cardoso
Estado de São Paulo - 03/06/2012

Escrevo esta crônica às vésperas de partir para o Japão e a China, de onde só regressarei depois de publicado o texto, daqui a duas semanas. É sempre arriscado, nessas condições, falar sobre a agenda política. Será mesmo? O marasmo é tão grande que possivelmente, ao voltar e reler os jornais, encontrarei os mesmos temas: a CPI, a corrupção com suas teias enredadas, os candidatos às prefeituras já conhecidos e suas previsíveis alianças, o PIB que cresce pouco, os juros que finalmente começam a cair, a inadimplência dos devedores, as demandas por reformas tributárias, as soluções caso a caso para diminuir os estoques das empresas (principalmente automobilísticas), e assim por diante. Dá até preguiça passar os olhos pelas colunas e notícias da mídia, sem falar das TVs que repetem tudo isso com sabor de press release, emitido seja pelo governo, seja por empresas.

Ainda recentemente, um sociólogo mexicano, falando na Fundação iFHC e se referindo a outro aspecto da mesma questão, disse que o resultado das eleições em seu país independe das campanhas eleitorais. Isso porque, quando a propaganda partidária tem vez na mídia, a “opinião” já está enraizada nos eleitores, pois nos anos anteriores se elegeram os heróis e os vilões cujas virtudes e defeitos foram repetidos todo o tempo, sem contestação crítica. Será muito diferente entre nós? É dessa maneira que se exerce nas modernas sociedades de massa o controle ideológico da opinião, seja pelos governos, seja pelos grupos dominantes na sociedade, econômicos ou políticos.

A sensação do já visto que alimenta a modorra e leva ao tédio e ao descaso com a política é, entretanto, enganadora e perigosa. A despeito de tudo, nem só de manipulação da opinião vive uma sociedade. De repente, quando menos se espera, não são as “forças do mercado” nem o “pensamento único” (que em nosso caso, menos do que neoliberal, é de esquerda desenvolvimentista-autoritária) que comandam a vontade popular. É o que vemos agora na Grécia e na França, onde a vitória de Hollande, a despeito do irrealismo de algumas de suas promessas, ecoa até na alma de Obama e o rígido dogmatismo tedesco, fantasiado de racionalidade de mercado, se vê cerceado por aspirações de outra natureza. Convém, portanto, não sobre-estimar a força das verdades preestabelecidas. Mormente em nossos dias, quando a internet permite que um sem-número de opiniões divergentes circule sem que os leitores ou ouvintes da grande mídia se deem conta.

Não digo isso para aceitar o conformismo vigente em muitos meios de comunicação, até porque, para fazer frente a ele, o desconcerto causado pela variabilidade de opiniões das mídias sociais, e mesmo pela mistura entre lixo eletrônico e real opinião, é insuficiente. Digo-o para alertar: a despeito de parecer que a política, principalmente a partidária, é mais enganação do que afirmação de interesses e valores que podem enfrentar a luz do sol, no final das contas o que decide a nossa vida em sociedade é a política mesmo. Portanto, sensaborona ou não, repetitiva ou não, controlada pelos que mandam ou não, dependemos dela. Nos dias que correm, sobretudo nos regimes democráticos, não há política sem comunicação; logo, é melhor tomar coragem para ler e ouvir tudo o que se diz, mesmo quando partindo de fontes suspeitas.

A precondição para que haja alternativas ao que aí está é manter a liberdade de expressão, mesmo que haja distorções. Isso não exclui uma luta constante contra estas, não para censurá-las, mas para confrontá-las com outras versões. Afastando por inaceitável qualquer tentativa de “controle social da mídia”, o acesso de opiniões divergentes aos meios de comunicação poderia criar um ambiente mais favorável à veracidade das informações.

Por exemplo: será que é democrático deixar que os governos abusem nas verbas publicitárias ou que as empresas estatais, sub-repticiamente, façam coro à mesma publicidade sob pretexto de estarem concorrendo em mercados que, muitas vezes, são quase monopólicos? E que dizer do tom invariavelmente otimista das declarações sobre a superação da crise financeira global oriundas de setores empresariais interessados ou, em nosso caso, da marcha contínua para o êxito econômico reiterada pelos governos? O efeito deletério desse tipo de propaganda disfarçada não é tão sentido na grande mídia, pois nesta há sempre a concorrência de mercado que a leva a pesar o interesse e mesmo a voz do consumidor e do cidadão eleitor. Mas nas mídias locais e regionais o pensamento único impera sem contraponto.

A autenticidade das informações escapa das deformações advindas da influência das forças estatais (inclusive do setor produtivo estatal) e das empresas privadas precisamente pela voz crítica dos setores da mídia independente, por meio de seus repórteres, editorialistas e mesmo dos proprietários que têm coragem de expor opiniões. Não por acaso, é contra estes que os donos do poder político e os partidos que os sustentam se movem: denunciam que é a imprensa que faz o papel da oposição. Até certo ponto isso é verdade. Mais por deficiência dos partidos de oposição, cujas vozes se perdem nos corredores dos Parlamentos, do que por desejo de protagonismo da mídia crítica. Nos países europeus ou nos Estados Unidos, por mais que haja partidarismo nos meios de comunicação ou que por lá prevaleça o mesmismo das notícias que refletem o statu quo, sempre há espaço para o outro lado, para o contraponto. Mal termina de falar o primeiro-ministro da Inglaterra e já a voz da oposição, como tal, é transmitida. O mesmo ocorre quando o presidente dos Estados Unidos faz sua apresentação anual ao Congresso.

Obviamente, não basta haver uma mudança na oferta de espaço pela mídia, é preciso que haja vozes de oposição com peso suficiente para serem ouvidas e se fazerem respeitar. Sem esquecer que nas democracias a voz que pesa politicamente é a de quem busca o voto para se tornar poder.